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LIVROS/LANÇAMENTOS
"VIAGEM AO FIM DO MILÊNIO"
Autor israelense se volta para a alma humana
Alguém se lembrará de
nós daqui a mil anos?
MARCELO PEN
FREE-LANCE PARA A FOLHA
C om a frase acima, o escritor
israelense A. B. Yehoshua
inicia sua "Viagem ao Fim do Milênio: Um Romance da Idade Média". A pergunta, quase um apelo
para que não nos esqueçamos de
quem somos, de quem fomos e
um dia seremos, inaugura a multiplicidade de questões e de significados embrenhados na densa
narrativa desta ficção, que inverte
a perspectiva pela qual estamos
acostumados a ver descritos a Europa e a Idade Média, a África, os
árabes e os judeus.
Afinal, a chegada do ano 1000 da
era cristã coincide com o ano de
4760 da criação do mundo segundo os israelitas e o ano de 390 da
hégira de Mahommed. E como os
heróis do romance são os judeus,
principalmente, e os árabes que
resolveram trocar o norte da África pela Europa na antevéspera do
novo milênio, a data cristã tem
outra conotação, além da aguardada chegada do Filho de Deus.
Para eles, ela também expressa
medo, pois, naquelas terras setentrionais, sombrias, pobres e insalubres, devem se precaver contra
ataques de fanáticos religiosos,
açulados por visões apocalípticas.
No romance de Yehoshua os
selvagens somos nós, a civilização
européia e ocidental. Com exceção de terras mais meridionais,
especialmente ao sul da Espanha,
a Europa não passa de um punhado de cidadezinhas sujas e sem lei.
As casas são, em sua maioria, choças apertadas sobre as quais fardos de fenos precisam ser postos
para contrabalançar a inclinação.
Bem diferente da paisagem ensolarada do Magrebe árabe, de
onde saem o mercador africano
Ben-Atar (judeu) e seu sócio Abu
Lufti (árabe). Residem na próspera e tolerante Tânger, às margens
do Mediterrâneo. Há um terceiro
sócio, Abuláfia, sobrinho de Ben-Atar, que vive na Europa, e lhes
fornece as mercadorias originárias de aldeias dos montes Atlas.
Todos os verões, os três se encontram no sul da Espanha. Enquanto Abuláfia lhes apresenta o
resultado das vendas, em moedas
de ouro e prata, seu tio e Abu lhe
renovam os estoques: especiarias,
cana-de-açúcar, frutas secas, azeite, perfumes, sedas, peles e adagas
incrustadas de pedras preciosas.
Mas naquele ano de 999 Ben-Atar e Abu partem com uma missão bem diferente: convencer
Abuláfia a reatar a transação comercial, desfeita no ano anterior
por exigência da nova mulher do
sobrinho, Esther-Míriam. A intransigente judia impôs um "repúdio" contra o tio de seu marido,
quando descobriu que Ben-Atar,
à semelhança de seus confrades
ismaelitas, tinha duas mulheres.
O judeu abala, assim, para a Europa, não só com Abu e sua tripulação árabe, mas também com as
duas mulheres, envoltas em véus
coloridos, um rabino e seu filho,
além de um casal de camelos. A
presença do rabino andaluz explica-se pela intenção de Ben-Atar
de provar à sra. Abuláfia, à luz das
escrituras e do raciocínio douto, a
legitimidade de seu amor duplo,
revertendo, assim, o "repúdio"
que ela lhe lançou.
Embora, à primeira vista, a tensão do romance se dê entre cristãos e infiéis, o que se sucede é
uma cisão mais profunda, no seio
do próprio judaísmo, separando
o norte e o sul, europeus e magrebinos, asquenazes e sefaraditas.
Esther-Míriam é descendente
de uma família de rabinos da cidade alemã de Worms (Vermaíza, para os judeus), às margens do
Reno. Legítima representante dos
austeros ashkenazitas ou asquenazes, ela não concorda com os
costumes liberais dos judeus meridionais e muito menos com a bigamia do tio de seu marido.
Adversários irreconciliáveis, ela
e Ben-Atar se confrontam diversas vezes, em tribunais rabínicos
(um deles improvisado sobre os
tonéis de uma vinícola) e fora deles, até que a vida, ou mais precisamente a morte, se interpõe entre os dois, ensinando-lhes uma
lição maior e mais amarga.
O que se inicia como um romance histórico, portanto, sobre
a mentalidade e os costumes de
pessoas distantes, termina como
um espelho voltado para nossa
própria alma, para nossos medos
e preconceitos, nossas diferenças
e nosso amor, o qual precisa ser
sempre defendido, contra os outros, contra nós mesmos e contra
a inutilidade de tudo. Afinal, alguém se lembrará de nós daqui a
mil anos?
Viagem ao Fim do Milênio: Um
Romance da Idade Média
Massa'el Tom HaElef
![](http://www.uol.com.br/fsp/images/ep.gif)
Autor: A. B. Yehoshua
Tradução: Milton Lando
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33 (352 págs.)
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