São Paulo, sábado, 01 de dezembro de 2001

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"VIAGEM AO FIM DO MILÊNIO"

Autor israelense se volta para a alma humana

Alguém se lembrará de nós daqui a mil anos?

MARCELO PEN FREE-LANCE PARA A FOLHA C om a frase acima, o escritor israelense A. B. Yehoshua inicia sua "Viagem ao Fim do Milênio: Um Romance da Idade Média". A pergunta, quase um apelo para que não nos esqueçamos de quem somos, de quem fomos e um dia seremos, inaugura a multiplicidade de questões e de significados embrenhados na densa narrativa desta ficção, que inverte a perspectiva pela qual estamos acostumados a ver descritos a Europa e a Idade Média, a África, os árabes e os judeus.
Afinal, a chegada do ano 1000 da era cristã coincide com o ano de 4760 da criação do mundo segundo os israelitas e o ano de 390 da hégira de Mahommed. E como os heróis do romance são os judeus, principalmente, e os árabes que resolveram trocar o norte da África pela Europa na antevéspera do novo milênio, a data cristã tem outra conotação, além da aguardada chegada do Filho de Deus. Para eles, ela também expressa medo, pois, naquelas terras setentrionais, sombrias, pobres e insalubres, devem se precaver contra ataques de fanáticos religiosos, açulados por visões apocalípticas.
No romance de Yehoshua os selvagens somos nós, a civilização européia e ocidental. Com exceção de terras mais meridionais, especialmente ao sul da Espanha, a Europa não passa de um punhado de cidadezinhas sujas e sem lei. As casas são, em sua maioria, choças apertadas sobre as quais fardos de fenos precisam ser postos para contrabalançar a inclinação.
Bem diferente da paisagem ensolarada do Magrebe árabe, de onde saem o mercador africano Ben-Atar (judeu) e seu sócio Abu Lufti (árabe). Residem na próspera e tolerante Tânger, às margens do Mediterrâneo. Há um terceiro sócio, Abuláfia, sobrinho de Ben-Atar, que vive na Europa, e lhes fornece as mercadorias originárias de aldeias dos montes Atlas.
Todos os verões, os três se encontram no sul da Espanha. Enquanto Abuláfia lhes apresenta o resultado das vendas, em moedas de ouro e prata, seu tio e Abu lhe renovam os estoques: especiarias, cana-de-açúcar, frutas secas, azeite, perfumes, sedas, peles e adagas incrustadas de pedras preciosas.
Mas naquele ano de 999 Ben-Atar e Abu partem com uma missão bem diferente: convencer Abuláfia a reatar a transação comercial, desfeita no ano anterior por exigência da nova mulher do sobrinho, Esther-Míriam. A intransigente judia impôs um "repúdio" contra o tio de seu marido, quando descobriu que Ben-Atar, à semelhança de seus confrades ismaelitas, tinha duas mulheres.
O judeu abala, assim, para a Europa, não só com Abu e sua tripulação árabe, mas também com as duas mulheres, envoltas em véus coloridos, um rabino e seu filho, além de um casal de camelos. A presença do rabino andaluz explica-se pela intenção de Ben-Atar de provar à sra. Abuláfia, à luz das escrituras e do raciocínio douto, a legitimidade de seu amor duplo, revertendo, assim, o "repúdio" que ela lhe lançou.
Embora, à primeira vista, a tensão do romance se dê entre cristãos e infiéis, o que se sucede é uma cisão mais profunda, no seio do próprio judaísmo, separando o norte e o sul, europeus e magrebinos, asquenazes e sefaraditas.
Esther-Míriam é descendente de uma família de rabinos da cidade alemã de Worms (Vermaíza, para os judeus), às margens do Reno. Legítima representante dos austeros ashkenazitas ou asquenazes, ela não concorda com os costumes liberais dos judeus meridionais e muito menos com a bigamia do tio de seu marido.
Adversários irreconciliáveis, ela e Ben-Atar se confrontam diversas vezes, em tribunais rabínicos (um deles improvisado sobre os tonéis de uma vinícola) e fora deles, até que a vida, ou mais precisamente a morte, se interpõe entre os dois, ensinando-lhes uma lição maior e mais amarga.
O que se inicia como um romance histórico, portanto, sobre a mentalidade e os costumes de pessoas distantes, termina como um espelho voltado para nossa própria alma, para nossos medos e preconceitos, nossas diferenças e nosso amor, o qual precisa ser sempre defendido, contra os outros, contra nós mesmos e contra a inutilidade de tudo. Afinal, alguém se lembrará de nós daqui a mil anos?


Viagem ao Fim do Milênio: Um Romance da Idade Média
Massa'el Tom HaElef
    
Autor: A. B. Yehoshua
Tradução: Milton Lando
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33 (352 págs.)




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