São Paulo, terça, 1 de dezembro de 1998

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Cabrera Infante faz sua volta ao mundo em livro


Em entrevista exclusiva à Folha, o escritor cubano conta que prepara obra sobre as principais cidades do planeta, entre elas Salvador e Rio


SILVIO CIOFFI
enviado especial à Inglaterra

Guillermo Cabrera Infante, 69, está de volta às livrarias brasileiras. Acaba de ser lançado, pela Ediouro, "Delito por Dançar o Chá-Chá-Chá", obra que reúne três contos breves, com prefácio da escritora brasileira Nélida Piñon.
Escrito em 95, "Chá-Chá-Chá" tem como pano de fundo de suas histórias Cuba, país onde Cabrera Infante nasceu e hoje já não é benvindo. O autor é um dos principais desafetos de Fidel Castro, a quem chama de "egomaníaco com sede de poder" e de "réplica branca de Idi Amim".
Mas nem sempre foi assim. Antes de se tornar verbete da "Enciclopédia Britannica", o escritor acompanhou Fidel em suas primeiras viagens internacionais e foi adido diplomático de Cuba em Bruxelas, na Bélgica, a partir de 1962. Rompido com Castro, Cabrera Infante foi para Madri, mas, em 1965, decidiu fixar residência na então fervilhante "swinging London" -isso depois de ter sido reiteradamente incomodado pela polícia franquista.
E foi em Londres, no seu apartamento em South Kensington, acompanhado por sua mulher Miriam Gómez, que o autor de "Três Tristes Tigres" (1967) e "Havana para um Infante Defunto" (1979) falou à Folha de assuntos díspares como literatura, a prisão de Pinochet, o Prêmio Nobel -que preferia ver atribuído a Jorge Amado- e o seu novo livro, com capítulos dedicados a Salvador e ao Rio.
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SER OU NÃO SER AMARGO - "Gostaria de ter visto Jorge Amado recebendo o Prêmio Nobel de Literatura neste ano. Sempre estou disposto a perdoar os excessos quando são em nome de uma literatura agradável, alegre. Gosto de "Dona Flor e seus Dois Maridos' -e sou alérgico a uma literatura "séria'. Hoje, cada vez menos escritores praticam a literatura que me agrada. Paul Auster é um jovem escritor de Nova York, que encontrei numa conferência em Hamburgo (Alemanha) e me parece bom.
José Saramago, ganhador do último Nobel, foi outro dos participantes desse evento literário. E estava tão fora de lugar que os demais passavam todo o tempo rindo. Acho que ele não deveria se chamar Saramago -e sim "ser amargo'. Não que eu seja um otimista: quando escrevo, sou um jogador. E nem sempre o jogador ganha. Mas isso é uma questão de temperamento. O perdedor pode saber que perdeu e rir, render-se ao azar. Acredito na literatura como jogo, e me diverte fazê-lo!"
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NOVO LIVRO - "Sou alérgico a futebol. Não me interessa para nada. Uma vez, estava com Miriam, e um jornalista me entrevistava. Quando nos perguntou sobre futebol, fizemos cara feia. Categórico, o jornalista sentenciou: "Mas o futebol é como o balé'. E Miriam respondeu: "Senhor, não conheço nenhum balé que se resolva a patadas'. (Nesse momento, Miriam Gómez prepara um café na cozinha que dá fundos para o apartamento abarrotado de livros e intervém.) Você sabia que Guillermo vai publicar um livro sobre cidades com capítulos sobre Rio de Janeiro e Salvador? (E Cabrera Infante responde.) Sim, essas são duas das minhas cidades preferidas. Fui assaltado na última vez que estivemos no Rio, em 1988, mas a primeira vez foi gloriosa, assim que esqueci o que não vale a pena. E a visita a Salvador foi espetacular!
Esse livro sobre as cidades vai se chamar algo como "A Janela Pineal'. Pineal é a glândula que ficaria entre os dois olhos, quase como um terceiro olho. Além de Rio e Salvador, Londres também está no livro, abrindo a edição. Falei ainda de cidades espanholas, italianas e até australianas."
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A CULTURA AFRO EM CUBA E NA BAHIA - "Bahia e Cuba se parecem muito, isso na relação das pessoas com a música e ainda na relação das pessoas com o calor. A revalorização da "santeria' que houve em Cuba nos últimos dez anos também tem a ver com o que ocorre em Salvador. As mesmas figuras afro -como Iemanjá- são cultivadas com fervor nos dois lugares. Miriam e eu nos sentimos muito cômodos na Bahia.
Também não posso viver sem música e sempre me chamou a atenção o fato de o mundo ter três países criadores de música: EUA, Brasil e Cuba. E isso se deve à presença dos negros nesses países."
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CATASTROFISMO, CASTRO E PINOCHET - "Em Cuba, o que há para fazer é esperar que Fidel Castro morra, como aconteceu com Francisco Franco (1892-1975) na Espanha. A morte de um ditador muda muitas coisas. Pinochet está agora preso, mas seu caso é diferente do de Franco e Fidel. Com Pinochet não havia intenção de criar uma nova ideologia. Havia, sim, a busca do poder pelo poder. Franco queria fazer uma espécie de novo império, mas tudo veio abaixo quando morreu. Espero que a morte seja piedosa com os cubanos e desmonte o estado de coisas."
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EM 59, A VISITA AO BRASIL - "Estive no Brasil fazendo parte da "entourage' de Fidel Castro. Isso ocorreu em abril de 1959, quando fomos convidados para almoçar no Palácio da Alvorada, em Brasília, por Juscelino Kubitschek (1902-1976). Quando saímos do almoço, num edifício extraordinário projetado por Oscar Niemeyer, tivemos uma idéia do que seria o futuro do Brasil. Aí, com uma ponta de inveja, Fidel Castro disse: "Isso não tem futuro, é somente para exibição, para a galeria'. Não foi minha impressão: não havia nada parecido em Havana...
JK era um indivíduo de aspecto centro-europeu. Foi muito deferente e correto com Fidel e com todo o grupo, ao contrário de Fidel, que não foi correto. Para começar, havíamos entrado no Brasil pelo Rio de Janeiro, quando o certo teria sido ir primeiro a Brasília. Não havia ninguém para nos receber no aeroporto do Rio, onde chegamos num avião presidencial movido à hélice.
Quando a comitiva nos levava ao hotel, passamos por uma enorme massa de gente que fazia fila. O chefe da escolta, capitão Valle, logo interpelou o chofer: "E essa fila, para que é?'. Quando soube que as pessoas estavam lá para ver Nat "King' Cole, protestou: "Fazem fila para ver esse negrinho e não nos recebem no aeroporto'."
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NO RIO - "Ficamos no hotel Copacabana Palace. À essa altura, Fidel Castro no Brasil era um completo desconhecido. Não lhe fizeram nenhum caso no Rio, nem em São Paulo. A única deferência que recebemos foi a de Kubitschek, no Palácio da Alvorada. A Brasília de então era uma série de edifícios meio desconexos. Mas era linda como arquitetura moderna."
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A IRA DE FIDEL - "Depois, fomos a Buenos Aires. Chegamos no dia 30 de abril, quando o presidente Frondisi tinha problemas com manifestações operárias e pediu a Fidel Castro que não participasse do 1º de maio. Fidel ficou irado. Aí ocorreu um episódio curioso. Estávamos ali quando um personagem conhecido de Havana chegou com uma notícia urgente.
Dizia que vinha de Cuba especialmente para comunicar que ocorriam coisas estranhas. Dizia que Che Guevara (1928-1967) e Raul Castro estavam repartindo terras sem permissão do governo.
Tudo isso junto provocou em Fidel uma ira tão grande que ele começou a dar patadas em todas as partes. Enquanto isso, gritava coisas assombrosas: "Eu fuzilo os dois. Ainda que seja meu irmão eu o fuzilo se está fazendo isso'."
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BUENOS AIRES, O TANGO E O SAMBA - "Fora isso, vi pouco de Buenos Aires. Era inverno e a cidade me pareceu inóspita. Visitei livrarias, encontrei exilados cubanos da época de Batista, mas não vi muito. Havia frio e a chuva ameaçava. Falando de música, o tango também não me interessa muito. É mais uma coreografia que uma música. E para os argentinos o que conta é a letra... O tango é um pretexto para bailar. É um pouco como o fado português: prefiro o desenfado do samba. Há elementos na música popular brasileira que vêm do fado, canções por exemplo de Elizeth Cardoso. Mas eu gosto das variações do samba, como a bossa nova. A bossa nova é um samba com os acentos mudados. Duke Ellington, em 1934, ao fazer uma versão de "El Manisero', foi um dos inventores da bossa nova.
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FIM DE SÉCULO CATASTRÓFICO - "Toda essa coisa do princípio do ano 2000 é um equívoco. Não existe fim de uma era, e essas previsões e discursos sobre fim do milênio não me interessam. Não acho que vá ocorrer nada no ano 2001. Na literatura, sempre haverá escritores interessantes, basta procurá-los. Politicamente, acho que 1999 será mais simbólico que 2000. Isso porque no ano que vem é aniversário de Fidel Castro no poder: vai completar 40 anos de poder absoluto, o que é catastrófico."
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Silvio Cioffi, editor de Turismo, viajou a convite da companhia aérea holandesa KLM e do British Tourist Authorithy (BTA).



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