|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GASTRONOMIA
A revolução culinária de Paul Bocuse
LUIZ HENRIQUE HORTA
FREE-LANCE PARA A FOLHA
"Todas as manhãs (...) vou
ao mercado..." Nessa frase
está o resumo da reviravolta que
aconteceu na cozinha francesa na
segunda metade do século passado. O autor? Paul Bocuse. Onde
ela aparece? No prefácio que escreve para o seu "La Cuisine de
Marché", publicado em 1976 e republicado agora em nova edição
brasileira, pela editora Record,
sob o título de "A Cozinha de Paul
Bocuse".
Bocuse foi o mais influente dos
chefs no século 20, o primeiro a
ter uma carreira pop, o primeiro a
virar uma grife, uma estrela da cozinha globalizada, levando sua
mensagem a todo o planeta. Embora não tenha sido o inventor da
nova culinária, que é um esforço
coletivo de muita gente, como
Vergé, Senderens e Guérard, ele
continua sendo o mais visível de
todos e com a carreira mais duradoura, uma espécie de porta-voz.
Agora que o movimento da
"nouvelle cuisine" já é história e já
se incorporou ao nosso dia-a-dia
de maneira sutil e irreversível, ver
nesse livro a coisa acontecendo
ainda no calor da radicalização é
educativo.
Vale transcrever o resto do parágrafo inicial: "Ao comprar pessoalmente os produtos que utilizo, sei onde achar as melhores alcachofras, os espinafres mais frescos e sei quem, naquele dia, levou
uns queijos de cabra deliciosos.
Às vezes não sei que pratos devo
preparar para o almoço, o que decido apenas durante a minha visita ao mercado e é isto, na minha
opinião, que faz a boa cozinha".
Alguém pensaria diferente hoje
em dia?
A este prefácio seguem-se quase
600 páginas sóbrias, sem ilustrações coloridas e nem fotos brilhantes, de receitas descritas de
forma austera, didática e rigorosa.
Afinal tratava-se de uma revolução, e o livro é quase um manifesto. Apesar de dirigido à dona de
casa, não é nada simples, justamente por pressupor um acesso a
produtos de uma qualidade absoluta, como se estivéssemos também em Lyon. Talvez valha mais
pelo "modo" que ensina, pela maneira de vermos o entorno culinário, uma maneira de nos dirigirmos ao nosso próprio "terroir",
ou caso não tenhamos para tanto,
pelo menos ao nosso quintal.
Como todo movimento vitorioso, suas regras estão de tal forma
aceitas que nem parecem mais ter
tanta contundência. Mas o parágrafo simples sobre o cotidiano
do cozinheiro indo ao mercado
carregava todo um ímpeto de mudança e mudança radical, era a
declaração de que só se usariam
produtos frescos, que só se usariam produtos que estivessem em
estação, e que tais produtos tinham que ter seus valores e sua
presença ressaltados nos pratos e
não encobertos por toneladas de
creme e molhos pesados.
O cozinheiro clássico recebia a
matéria-prima e tinha que trabalhá-la da melhor maneira possível
para recriar os pratos canônicos e,
muito raramente, ousar uma modificação. Mas os cardápios eram
conhecidos e repetidos, e a sazonalidade e territorialidade eram
combatidas, mesmo que por
meio de artifícios de conservação,
confits, conservas e enlatados.
O ideal da cozinha clássica era
que fosse possível repeti-la em
qualquer lugar, com a exatidão de
uma coreografia. A "nouvelle"
enfia tempo e espaço pela cozinha
adentro, o cozinheiro passa a ser
também um caçador de produtos,
o tempo dos alimentos passa a ser
respeitado como um dogma, se
não está bom o pato, se não estão
perfeitas e em estação as frutas,
então não se faz esta ou aquela receita. A geografia também se leva
em conta, justamente isso que Bocuse busca no mercado local, o regional.
Basicamente foi uma inversão,
fazer com que os produtos determinassem o cardápio, e exigindo
dos chefs versatilidade e criatividade enormes. Semelhanças com
Adriá, Robuchon, Ducasse e tantos outros não são casuais, pois
essa abertura para a invenção leva
o cozinheiro a uma liberdade para
inventar e testar sem precedentes.
Vencida a guerra, com o tempo,
Bocuse se permitiu reincorporar
coisas deixadas de lado, reviu e releu a comida da "França profunda", já agora totalmente corrigida
de seus excessos. Recentemente
declarou, entre irônico e brincalhão, que seu prato favorito é o
pot-au-feu, o cozido francês, porque se pode comê-lo por três dias,
em etapas. Nada mais básico e
clássico. Continua herético o
monsieur Bocuse...
A COZINHA DE PAUL BOCUSE.
Lançamento: editora Record. Tradução:
Vera Pedroso e Luzia Machado da Costa.
Quanto: R$ 50 (620 págs.)
Texto Anterior: Artes cênicas: BH anima programação de férias com 107 espetáculos Próximo Texto: Mundo gourmet: Cozinha é modesta no vistoso Il Vecchio la Vecchia Índice
|