São Paulo, quinta-feira, 02 de janeiro de 2003

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GASTRONOMIA

A revolução culinária de Paul Bocuse

LUIZ HENRIQUE HORTA
FREE-LANCE PARA A FOLHA

"Todas as manhãs (...) vou ao mercado..." Nessa frase está o resumo da reviravolta que aconteceu na cozinha francesa na segunda metade do século passado. O autor? Paul Bocuse. Onde ela aparece? No prefácio que escreve para o seu "La Cuisine de Marché", publicado em 1976 e republicado agora em nova edição brasileira, pela editora Record, sob o título de "A Cozinha de Paul Bocuse".
Bocuse foi o mais influente dos chefs no século 20, o primeiro a ter uma carreira pop, o primeiro a virar uma grife, uma estrela da cozinha globalizada, levando sua mensagem a todo o planeta. Embora não tenha sido o inventor da nova culinária, que é um esforço coletivo de muita gente, como Vergé, Senderens e Guérard, ele continua sendo o mais visível de todos e com a carreira mais duradoura, uma espécie de porta-voz.
Agora que o movimento da "nouvelle cuisine" já é história e já se incorporou ao nosso dia-a-dia de maneira sutil e irreversível, ver nesse livro a coisa acontecendo ainda no calor da radicalização é educativo.
Vale transcrever o resto do parágrafo inicial: "Ao comprar pessoalmente os produtos que utilizo, sei onde achar as melhores alcachofras, os espinafres mais frescos e sei quem, naquele dia, levou uns queijos de cabra deliciosos. Às vezes não sei que pratos devo preparar para o almoço, o que decido apenas durante a minha visita ao mercado e é isto, na minha opinião, que faz a boa cozinha". Alguém pensaria diferente hoje em dia?
A este prefácio seguem-se quase 600 páginas sóbrias, sem ilustrações coloridas e nem fotos brilhantes, de receitas descritas de forma austera, didática e rigorosa. Afinal tratava-se de uma revolução, e o livro é quase um manifesto. Apesar de dirigido à dona de casa, não é nada simples, justamente por pressupor um acesso a produtos de uma qualidade absoluta, como se estivéssemos também em Lyon. Talvez valha mais pelo "modo" que ensina, pela maneira de vermos o entorno culinário, uma maneira de nos dirigirmos ao nosso próprio "terroir", ou caso não tenhamos para tanto, pelo menos ao nosso quintal.
Como todo movimento vitorioso, suas regras estão de tal forma aceitas que nem parecem mais ter tanta contundência. Mas o parágrafo simples sobre o cotidiano do cozinheiro indo ao mercado carregava todo um ímpeto de mudança e mudança radical, era a declaração de que só se usariam produtos frescos, que só se usariam produtos que estivessem em estação, e que tais produtos tinham que ter seus valores e sua presença ressaltados nos pratos e não encobertos por toneladas de creme e molhos pesados.
O cozinheiro clássico recebia a matéria-prima e tinha que trabalhá-la da melhor maneira possível para recriar os pratos canônicos e, muito raramente, ousar uma modificação. Mas os cardápios eram conhecidos e repetidos, e a sazonalidade e territorialidade eram combatidas, mesmo que por meio de artifícios de conservação, confits, conservas e enlatados.
O ideal da cozinha clássica era que fosse possível repeti-la em qualquer lugar, com a exatidão de uma coreografia. A "nouvelle" enfia tempo e espaço pela cozinha adentro, o cozinheiro passa a ser também um caçador de produtos, o tempo dos alimentos passa a ser respeitado como um dogma, se não está bom o pato, se não estão perfeitas e em estação as frutas, então não se faz esta ou aquela receita. A geografia também se leva em conta, justamente isso que Bocuse busca no mercado local, o regional.
Basicamente foi uma inversão, fazer com que os produtos determinassem o cardápio, e exigindo dos chefs versatilidade e criatividade enormes. Semelhanças com Adriá, Robuchon, Ducasse e tantos outros não são casuais, pois essa abertura para a invenção leva o cozinheiro a uma liberdade para inventar e testar sem precedentes.
Vencida a guerra, com o tempo, Bocuse se permitiu reincorporar coisas deixadas de lado, reviu e releu a comida da "França profunda", já agora totalmente corrigida de seus excessos. Recentemente declarou, entre irônico e brincalhão, que seu prato favorito é o pot-au-feu, o cozido francês, porque se pode comê-lo por três dias, em etapas. Nada mais básico e clássico. Continua herético o monsieur Bocuse...


A COZINHA DE PAUL BOCUSE.
Lançamento: editora Record. Tradução: Vera Pedroso e Luzia Machado da Costa. Quanto: R$ 50 (620 págs.)



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