São Paulo, domingo, 02 de janeiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Vidas paralelas

Associated Press
O ator Leonardo DiCaprio vive Howard Hughes na cinebiografia "O Aviador", que estréia em 11 de fevereiro no Brasil



Crise de criatividade em Hollywood leva a boom de cinebiografias, que vão dominar os lançamentos e as premiações em 2005

Vidas de aviador, sexólogo, músicos, revolucionário, entre outras personalidades, são adaptadas para a telona com "licenças poéticas"



SÉRGIO DÁVILA
DA CALIFÓRNIA

Hollywood anda numa crise de criatividade sem precedentes. Não há roteiros originais e os que existem não fazem sucesso.
Evidência número 1: dos 20 filmes mais assistidos em 2004 nos EUA, seis foram baseados em best-sellers/livros consagrados ("Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban", "A Supremacia Bourne", "Eu, Robô", "Van Helsing", "Tróia", "O Expresso Polar"), cinco são continuações ("Shrek 2", "Homem-Aranha 2", "Harry Potter", "A Supremacia Bourne" e "Diários de Princesa 2"), quatro são animações, que exigem o mínimo esforço de atores consagrados ("Shrek 2", "Os Incríveis", "O Espanta Tubarões" e "O Expresso Polar"), um vem das histórias em quadrinhos ("Homem-Aranha 2"), um é refilmagem de um original japonês ("O Grito"), um é documentário ("Fahrenheit 11 de Setembro") e um se baseia no Novo Testamento, pelo menos segundo seu diretor, Mel Gibson ("A Paixão de Cristo").
Evidência número 2: a julgar pelas estréias de fim de ano, que devem dominar as premiações do começo de 2005 e as telas brasileiras do primeiro semestre, a crise continua. Há um boom de cinebiografias, roteiros feitos a partir de personalidades, nem sempre fidedignos, mas nada originais.
Se o Globo de Ouro aponta tendência de como o Oscar vai se comportar, "O Aviador" é a que se destaca do bloco: a vida do milionário excêntrico texano Howard Hughes (1905-1976), tal como a enxergou o diretor Martin Scorsese, com Leonardo DiCaprio no papel principal, levou seis indicações (o prêmio será entregue no dia 16 de janeiro; no dia 25 saem as indicações do Oscar, a ser entregue em 27 de fevereiro).
Logo atrás vem "Em Busca da Terra do Nunca", com cinco. É a história de sir James Matthew Barrie (1860-1937), o autor britânico que entraria para a história como o criador da peça "Peter Pan", em 1925, sobre o menino que não queria crescer, com Johnny Depp no papel do escritor e direção do alemão Marc Forster (o mesmo do interessante "A Última Ceia", de 2001, que deu o Oscar de melhor atriz a Halle Berry no ano seguinte). Há ainda "Kinsey", com três indicações, sobre o sexólogo norte-americano Alfred Kinsey (1894-1956).
E histórias tocantes, como "Hotel Rwanda", sobre Paul Rusesabagina, uma espécie de Schindler do genocídio que ocorreu em 1994 no país africano, interpretado com maestria por Don Cheadle, o espanhol "Mar Adentro", que reconta a luta do advogado tetraplégico Ramon Sampedro pelo direito à eutanásia, revivido por Javier Bardem, e o brasileiro "Diários de Motocicleta", direção de Walter Salles para a viagem iniciática pela América Latina do jovem Che Guevara (1928-1967), que reencarna na pele de Gael García Bernal.
Musicais? Tem também, no bloco "Ray", sobre Ray Charles, em que o comediante Jamie Foxx faz um trabalho impressionante como o músico negro morto no ano passado, "De-Lovely", com Kevin Kline como o compositor norte-americano Cole Porter (1891-1964), e "Beyond the Sea", projeto de Kevin Spacey sobre o (pouco conhecido no Brasil) crooner Bobby Darin (1936-1973), que ficaria famoso com sua interpretação de "Splish, Splash", "Mack the Knife", além da música-título.
Por que tanta cinebiografia, e por que tantas ao mesmo tempo? "Toda vez que eu penso em fazer um filme, leio sobre a vida de outras pessoas, e elas são tão fascinantes", disse à Folha Billy Condon, diretor de "Kinsey", que antes dirigiu "Deuses e Monstros" (1998), sobre a vida do diretor britânico James Whale, autor de filmes de sucesso nos anos 30 como "O Homem Invisível", "Frankenstein", e "A Noiva de Frankenstein", que revelou Boris Karloff, tinha um caso com seu jardineiro e acabou se suicidando aos 68 anos, afogando-se numa piscina, encharcado de álcool. "Às vezes, essas histórias verdadeiras permitem que você faça muito mais do que a ficção."
Verdade, mas há mais do que isso. "Os roteiristas estão tendo dificuldade em criar histórias que sejam novas e diferentes, e muitas biografias de personalidades são únicas nesse sentido", disse Jeanine Basinger, responsável pela cadeira de estudos de cinema da Universidade Wesleyan. "Além disso, as cinebiografias nunca saíram realmente de moda."
De certo, o fenômeno não é novo. Para citar apenas um dos diretores no páreo neste ano, o norte-americano Martin Scorsese construiu sua carreira em três sólidos pilares cinebiográficos.
São eles: "Sexy e Marginal" (1972), seu primeiro longa de verdade, baseado na vida de "Boxcar" Bertha Thompson, uma filha de comunistas dos anos 30; "Touro Indomável" (1980), talvez sua obra-prima, sobre o ex-lutador de boxe Jake La Motta, que valeu o Oscar a Robert de Niro pelo papel-título; e "Os Bons Companheiros" (1990), na verdade a vida do ex-mafioso arrependido Henry Hill, no filme interpretado por Ray Liotta. E, segundo contou à Folha, seu próximo projeto depois de "O Aviador" é um documentário baseado na biografia que Bob Dylan acaba de lançar, "Chronicles - Vol. 1".
Dinheiro também não parece ser o único argumento, embora não exista diretor, produtor ou estúdio no mundo que faça um filme pensando em não ter bilheteria. Mesmo assim, entre os cem filmes que mais faturaram em vendas de ingresso no mundo todo em todos os tempos, apenas um é do gênero: "Prenda-me Se For Capaz", sobre o ex-falsário Frank Abagnale Jr., interpretado pelo mesmo DiCaprio de "O Aviador". Está em 96º lugar, com US$ 351 milhões.
E, se formos incluir na categoria "A Paixão de Cristo", o delírio sadomasoquista do ator-diretor-produtor Mel Gibson, supostamente baseado na vida de Jesus segundo o Novo Testamento. É o 24º colocado, com US$ 611 milhões, e em primeiro lugar em língua não-inglesa (é falado em aramaico, hebreu e latim, lembre-se).
Talvez tenha razão o crítico David Edelstein, da revista eletrônica "Slate": "Depois da interminável/ainda em andamento discussão desta coluna sobre as cinebiografias e seus críticos, os problemas do gênero podem ser resumidos da seguinte maneira: cinebiografias têm o ritmo de um metrônomo quando se trata de previsibilidade de diálogos; usam licenças poéticas a ponto de distorcer o sentido das vidas que tentam retratar (veja "Uma Mente Brilhante'); e são geralmente muito retalhadas, muito longas ou muito resumidas para ter algum impacto dramático".
E não, ele não se referia a "Alexandre, o Grande", o maior fracasso de Oliver Stone até agora, mas a "O Aviador", que está longe de ser uma droga.


Texto Anterior: Crítica: "C.S.I" ordena o caos da violência
Próximo Texto: TV: Tony Ramos se desvia do caminho do bem
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.