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CINEMA/ESTRÉIAS
"POUCAS E BOAS"
Protagonista é escada para o autor Woody Allen
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA
"Poucas e Boas" é, em princípio, uma biografia de
Emmet Ray (Sean Penn), guitarrista imaginário dos anos 30 que
se autodefinia como o segundo
melhor do mundo.
À parte isso, o filme de Woody
Allen nos informa muito pouco a
seu respeito. Sabemos que é excêntrico, perdulário, adora beber
e tem desmaios quando vê seu
ídolo, Django Reinhardt (este,
real), que ele próprio considera o
melhor guitarrista do mundo.
No mais, o centro do filme dedica-se, basicamente, a nos informar que, sendo artista, a única fidelidade de Emmet é à sua música. Embora adore as mulheres,
elas ocupam um lugar secundário
em sua vida.
Por que as coisas se passam assim? Quem faz a pergunta de modo mais incisivo é uma de suas
mulheres (Uma Thurman), disposta a compreender (com um
equipamento intelectual mais
próprio da psicanálise americana
dos anos 70 do que dos escritores
dos anos 30) por que Emmet é
cleptomaníaco, gosta de trens, de
atirar em ratos ou ainda por que
foi gigolô.
Mistérios humanos
Nem ela descobrirá muita coisa
nem nós. Isso não é tão terrível.
Seres humanos são, com frequência, um mistério.
No cinema, esse mistério e suas
ambiguidades tendem a ser explorados com riqueza (para não ir
longe: "Cidadão Kane" é sobre o
labirinto de um homem).
O que deixa a desejar em "Poucas e Boas" não é bem isso, mas o
fato de sentirmos, por trás de Emmet, a figura onipresente de
Woody Allen, como se o protagonista fosse, basicamente, escada
para o autor do filme.
É possível argumentar que em
"Kane" isso também acontece,
que o magnata está lá antes de tudo para que Welles brilhe.
É verdade. A diferença é que
Welles confere a um milionário
mitômano uma dimensão trágica, enquanto Allen reduz seu protagonista trágico e autodestrutivo
a uma série de vinhetas razoavelmente humorísticas, mediadas
por intervenções de algumas pessoas que comentam a vida do músico.
O espectador, um tanto atônito,
não sabe se aquilo é uma comédia
(o que seria justo esperar de
Woody), um drama, se é biografia
ou ficção.
Essa insegurança não é um problema em si (poderia ser até uma
virtude do filme). No caso, a impressão é de que o diretor-roteirista partiu da imagem trágica e
um tanto indigesta que faz de certo tipo de artistas, mas recuou para criar, no fim das contas, um espetáculo antes de tudo digestivo.
Sobretudo o Woody Allen de
"Poucas e Boas" se mostra incapaz de sair de seu próprio mundo
para olhar de verdade o que se
passa a seu redor.
Não é mais o comediante inquieto, que vivia testando os limites de sua arte. Parece satisfeito de
ser um autor, reconhecível por
uns tantos tiques.
O que não o impede, diga-se, de
ter boas idéias (certas manias de
Emmet etc.) ou de produzir bons
momentos, como toda a sequência do namoro entre Emmet e
Hattie (Samantha Morton), a garota muda.
Aliás, Samantha Morton, Sean
Penn e a música é que tornam
"Poucas e Boas" de fato digerível.
Poucas e Boas
Sweet and Lowdown
Direção: Woody Allen
Produção: EUA, 1999
Com: Sean Penn, Samantha Morton,
Uma Thurman, Brian Markinson
Quando: a partir de hoje nos cines Belas
Artes, Cinearte, Lumière, Cinemark
Market Place, Pátio Higienópolis e
Tamboré
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