São Paulo, sexta-feira, 02 de fevereiro de 2001

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CINEMA/ESTRÉIAS

"POUCAS E BOAS"

Protagonista é escada para o autor Woody Allen



INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA



"Poucas e Boas" é, em princípio, uma biografia de Emmet Ray (Sean Penn), guitarrista imaginário dos anos 30 que se autodefinia como o segundo melhor do mundo.
À parte isso, o filme de Woody Allen nos informa muito pouco a seu respeito. Sabemos que é excêntrico, perdulário, adora beber e tem desmaios quando vê seu ídolo, Django Reinhardt (este, real), que ele próprio considera o melhor guitarrista do mundo.
No mais, o centro do filme dedica-se, basicamente, a nos informar que, sendo artista, a única fidelidade de Emmet é à sua música. Embora adore as mulheres, elas ocupam um lugar secundário em sua vida.
Por que as coisas se passam assim? Quem faz a pergunta de modo mais incisivo é uma de suas mulheres (Uma Thurman), disposta a compreender (com um equipamento intelectual mais próprio da psicanálise americana dos anos 70 do que dos escritores dos anos 30) por que Emmet é cleptomaníaco, gosta de trens, de atirar em ratos ou ainda por que foi gigolô.

Mistérios humanos
Nem ela descobrirá muita coisa nem nós. Isso não é tão terrível. Seres humanos são, com frequência, um mistério.
No cinema, esse mistério e suas ambiguidades tendem a ser explorados com riqueza (para não ir longe: "Cidadão Kane" é sobre o labirinto de um homem).
O que deixa a desejar em "Poucas e Boas" não é bem isso, mas o fato de sentirmos, por trás de Emmet, a figura onipresente de Woody Allen, como se o protagonista fosse, basicamente, escada para o autor do filme.
É possível argumentar que em "Kane" isso também acontece, que o magnata está lá antes de tudo para que Welles brilhe.
É verdade. A diferença é que Welles confere a um milionário mitômano uma dimensão trágica, enquanto Allen reduz seu protagonista trágico e autodestrutivo a uma série de vinhetas razoavelmente humorísticas, mediadas por intervenções de algumas pessoas que comentam a vida do músico.
O espectador, um tanto atônito, não sabe se aquilo é uma comédia (o que seria justo esperar de Woody), um drama, se é biografia ou ficção.
Essa insegurança não é um problema em si (poderia ser até uma virtude do filme). No caso, a impressão é de que o diretor-roteirista partiu da imagem trágica e um tanto indigesta que faz de certo tipo de artistas, mas recuou para criar, no fim das contas, um espetáculo antes de tudo digestivo.
Sobretudo o Woody Allen de "Poucas e Boas" se mostra incapaz de sair de seu próprio mundo para olhar de verdade o que se passa a seu redor.
Não é mais o comediante inquieto, que vivia testando os limites de sua arte. Parece satisfeito de ser um autor, reconhecível por uns tantos tiques.
O que não o impede, diga-se, de ter boas idéias (certas manias de Emmet etc.) ou de produzir bons momentos, como toda a sequência do namoro entre Emmet e Hattie (Samantha Morton), a garota muda.
Aliás, Samantha Morton, Sean Penn e a música é que tornam "Poucas e Boas" de fato digerível.

Poucas e Boas
Sweet and Lowdown

  




Direção: Woody Allen
Produção: EUA, 1999
Com: Sean Penn, Samantha Morton, Uma Thurman, Brian Markinson
Quando: a partir de hoje nos cines Belas Artes, Cinearte, Lumière, Cinemark Market Place, Pátio Higienópolis e Tamboré




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