São Paulo, sexta-feira, 02 de fevereiro de 2001

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GASTRONOMIA

O que comem as quatrocentonas paulistas?

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA



São Paulo está fazendo 447 anos. Passei a vida inteira aqui, filha de pais mineiros, e minhas lembranças boas de infância paulista, por incrível que pareça, são lembranças de cozinhas de imigrantes de segunda geração. Novidades excitantes como pão com alho e azeite, quibe cru, alcachofras recheadas, gefilte fish, doce de damasco em forminhas, marzipã.
Com as amigas quatrocentonas e suas mães, nada aprendi. Chamo carinhosamente de quatrocentona aquela mulher que pensa que só ela tem avó.
Para começar, o assunto "comida" era tabu. Éramos também meninas muito urbanas, e as raízes estavam nas fazendas das tais avós. Íamos de casa para a escola com eventuais paradas na Doceira Paulista para uma empadinha ou um quindim. Nas casas, nada que nunca houvesse visto antes. Arroz de forno, carne picadinha de ponta de faca, canja de galinha, quibebe, biscoito de polvilho, pudim de clara, rocambole, bolo de nozes com recheio de doce de ovos e a mais ubíqua das sobremesas, camadas de rodelas de laranja entremeadas e cobertas de coco ralado.
Em dia de festa, peru com farofa e lembro-me, nos aniversários mais caprichados, de cachos de passas recheadas caindo de trepadeiras como uvas.
Com certeza absoluta, a família paulistana era muito tradicional em matéria de comida e ainda não aceitava as novidades trazidas de fora, de outras terras.
Para ilustrar, lembro que viajei com uma amiga cheia de avós para Paris, já moças as duas. Ficamos no Grand Hôtel, sobre o Café de la Paix. Jantávamos todos os dias sob a batuta de um grande chef, pois a comida era sensacional. E, em todo jantar, a amiga quatrocentona virava-se para o garçom e, sedutora, pedia:
"Será que você não me arranjaria um prato com um montinho de arroz e, em cima do montinho, um ovo frito com a gema mole?".
O rapaz acedia, pressuroso. Lá pelo fim da semana e pelo sétimo ovo, escutei o sussurro dele com um companheiro:
"Tenho ganas de dar-lhe uns tapas na bundinha". Era português. E ela bem os merecia.
Fomos crescendo, São Paulo, ela e eu. Nos anos 80, ela foi parar no hospital vítima de intoxicação de sashimi, que ousara experimentar num esforço de auto-educação, já que ninguém comia outra coisa. Voltou por tempo indefinido a uma inocente sopinha ou canja de galinha.
Por essas e por outras, foram-me vedados segredos de raiz da verdadeira cozinha paulista. Perdi a paçoca de carne (feita com três carnes segundo outra amiga quatrocentona), perdi o arroz de suã de porco, o tatu de panela, o mangarito, o cará do ar, o virado de farinha de milho e muito mais, com certeza, embalada pelos lombinhos de porco e galinha ensopada de minha casa...
Há uns dez anos, para encanto meu, levantou-se a ponta do véu. Fui convidada para três dias de comida de tropeiro e conheci Fia, a cozinheira paulista sem sobrenome comprido e sem avó aparente. Comi do melhor que São Paulo podia me dar. Garanto que pelas mãos de Fia ganharíamos o Bocuse D'Or, abriríamos um restaurante de sucesso em Nova York, brilharíamos nas estrelas dos melhores guias. E não é que Fia sumiu?
Apareça, Fia! Juntas, vamos sair pelo Vale do Paraíba, em outubro, numa tarde cinzenta de nuvens e trovoadas. Se der sorte, choverão gordas içás. Vamos fritá-las, misturar com farinha e comer a farofa de bundas crocantes.
Só então poderei morrer sossegada, enfim, paulista.
E-mail - ninahort@uol.com.br

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