|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GASTRONOMIA
O que comem as quatrocentonas paulistas?
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
São Paulo está fazendo 447
anos. Passei a vida inteira
aqui, filha de pais mineiros, e minhas lembranças boas de infância
paulista, por incrível que pareça,
são lembranças de cozinhas de
imigrantes de segunda geração.
Novidades excitantes como pão
com alho e azeite, quibe cru, alcachofras recheadas, gefilte fish, doce de damasco em forminhas,
marzipã.
Com as amigas quatrocentonas
e suas mães, nada aprendi. Chamo carinhosamente de quatrocentona aquela mulher que pensa
que só ela tem avó.
Para começar, o assunto "comida" era tabu. Éramos também
meninas muito urbanas, e as raízes estavam nas fazendas das tais
avós. Íamos de casa para a escola
com eventuais paradas na Doceira Paulista para uma empadinha
ou um quindim. Nas casas, nada
que nunca houvesse visto antes.
Arroz de forno, carne picadinha
de ponta de faca, canja de galinha,
quibebe, biscoito de polvilho, pudim de clara, rocambole, bolo de
nozes com recheio de doce de
ovos e a mais ubíqua das sobremesas, camadas de rodelas de laranja entremeadas e cobertas de
coco ralado.
Em dia de festa, peru com farofa
e lembro-me, nos aniversários
mais caprichados, de cachos de
passas recheadas caindo de trepadeiras como uvas.
Com certeza absoluta, a família
paulistana era muito tradicional
em matéria de comida e ainda
não aceitava as novidades trazidas de fora, de outras terras.
Para ilustrar, lembro que viajei
com uma amiga cheia de avós para Paris, já moças as duas. Ficamos no Grand Hôtel, sobre o Café
de la Paix. Jantávamos todos os
dias sob a batuta de um grande
chef, pois a comida era sensacional. E, em todo jantar, a amiga
quatrocentona virava-se para o
garçom e, sedutora, pedia:
"Será que você não me arranjaria um prato com um montinho
de arroz e, em cima do montinho,
um ovo frito com a gema mole?".
O rapaz acedia, pressuroso. Lá
pelo fim da semana e pelo sétimo
ovo, escutei o sussurro dele com
um companheiro:
"Tenho ganas de dar-lhe uns tapas na bundinha". Era português.
E ela bem os merecia.
Fomos crescendo, São Paulo,
ela e eu. Nos anos 80, ela foi parar
no hospital vítima de intoxicação
de sashimi, que ousara experimentar num esforço de auto-educação, já que ninguém comia outra coisa. Voltou por tempo indefinido a uma inocente sopinha ou
canja de galinha.
Por essas e por outras, foram-me vedados segredos de raiz da
verdadeira cozinha paulista. Perdi
a paçoca de carne (feita com três
carnes segundo outra amiga quatrocentona), perdi o arroz de suã
de porco, o tatu de panela, o mangarito, o cará do ar, o virado de farinha de milho e muito mais, com
certeza, embalada pelos lombinhos de porco e galinha ensopada
de minha casa...
Há uns dez anos, para encanto
meu, levantou-se a ponta do véu.
Fui convidada para três dias de
comida de tropeiro e conheci Fia,
a cozinheira paulista sem sobrenome comprido e sem avó aparente. Comi do melhor que São
Paulo podia me dar. Garanto que
pelas mãos de Fia ganharíamos o
Bocuse D'Or, abriríamos um restaurante de sucesso em Nova
York, brilharíamos nas estrelas
dos melhores guias. E não é que
Fia sumiu?
Apareça, Fia! Juntas, vamos sair
pelo Vale do Paraíba, em outubro,
numa tarde cinzenta de nuvens e
trovoadas. Se der sorte, choverão
gordas içás. Vamos fritá-las, misturar com farinha e comer a farofa
de bundas crocantes.
Só então poderei morrer sossegada, enfim, paulista.
E-mail - ninahort@uol.com.br
Texto Anterior: Curta Petrobras às seis: Programa exibe cinematografia irregular de Recife Próximo Texto: Mundo Baco: Há preços camaradas além do Cone Sul Índice
|