|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GASTRONOMIA
Crista de galinha pode ser uma delícia
NINA HORTA <
COLUNISTA DA FOLHA
Theodore Zeldin, escritor
inglês, fundador do Simpósio
de Comida de Oxford, acha que a
gastronomia é a arte de utilizar o
alimento para criar felicidade. E
que a maioria de nossos hábitos
mentais é modelada sobre nossa
reação diante da comida. Para
ele, "en vol d'oiseau", existem
maneiras diferentes de comer para alcançar o bom prazer.
A mais tradicional é comer até
se saciar, se confortar. Comemos
as receitas da terra, da avó, da
mãe e estamos em terreno seguro.
O nosso terreno. Não rompemos
hábitos, tabus, não desrespeitamos regras, não desobedecemos
ao proibido, não desafiamos o
ameaçador. Nada de contatos
com o "outro", o inimigo.
A outra maneira, além de trazer conforto, solução da fome,
traz uma contribuição positiva à
atitude diante da vida. Toda a invenção, todo o progresso, nasce de
uma ligação entre idéias que jamais haviam sido ligadas. Aproximam-se dois corpos estranhos.
Para os indivíduos que tentam
exercer essa criatividade, comer é
ver o mundo com olhar novo. Os
cozinheiros criativos descobrem
misturas jamais sonhadas e convidam os que comem a partilhar
com eles a sua coragem, a perder
o medo do exótico e das bizarrices, perder o medo do outro.
Mas, há sempre um "mas", para
ser audacioso, o cozinheiro tem
de saber cozinhar ou, pelo menos,
deve saber por intuição o que torna o ruim gostoso.
Toda essa vã filosofia me veio à
cabeça ao assistir pela TV a vômitos em "close" de cabeças gosmentas de galinha e gafanhotos cascudos, estralando nos dentes dos
participantes de "No Limite".
Adoro TV e adoro situações limites. No limite da fome, a criatividade se põe a funcionar violentamente. Pesca-se com guarda-chuva, faz-se sopa de folhas, salada de flores. Rolinhas e pombos
voam direto dos pombais para a
panela.
Não se pode negar, no entanto,
que há gente que morre para não
transgredir um tabu. Ingleses em
terras geladas preferiram morrer
a comer seus cachorros, e americanos em guerra entraram em estado de inanição para não compartilharem o menu de lagarto,
grilo frito e perninha de rã.
Mas, neste programa de TV que
vem fazendo sucesso no mundo
todo, por que tratar a comida como castigo? Magoei, fiquei triste.
Por que deixar o pessoal em dieta
forçada, coisa que os faz inseguros, irritadiços, deprimidos? Por
que viajar tão longe se a locação é
um spa onde se consegue comida
de um todo poderoso com métodos de gincana urbana? Por que
não lutar pela sua própria comida
como Robinson Crusoé?
Dirão que não estão preparados
para tanto. E aquele Tarzan que
nos apresentaram em "off" não
pode ser um personal training
dando uns tapinhas na arte de sobreviver, de descolar o rango com
mais dignidade? Ganharia pontos
o tatu mais gostoso, a galinhola
mais crocante, o peixe cozido em
folhas sob a terra, a passarinhada
mais picante. Lembrem-se: no limite, vale tudo.
É uma brincadeira sem fim.
Língua de flamingo, bochecha de
bacalhau, cocô de alce, camarão
vivo. Uma tribo brasileira, sem
mais explicações, come terra, fósforos, aspirina, cinza e cânfora.
Toda essa gramática de comida
pode ser aprendida como aprendemos o inglês. E o outro, o exótico, pode estar bem perto. Há um
prato feito com cabeça, fígado, tripa, rins, bucho, canelas e o sangue
do bode e um pouco de carne do
próprio bode. Leva o nome de buchada e é servido a presidentes.
Faz parte de nosso alfabeto como fazem o "B" de beiço de boi, o
"F" de formiga, o "G" de gato, o
"D" de dobradinha, o "J" de jacaré na chapa, o "M" de miúdos de
tartaruga, o "P" de piranha ou
preá ensopadas.
Não temos nada a temer do vocabulário alheio já que o nosso é
tão rico. Mas vamos parar de
olhar a comida com essa perspectiva de nojo do "outro", considerando-o como aquele que se vomita. Temos medo do desconhecido, mas bem que poderíamos fazer um jogo que trouxesse aos participantes e a nós um divertimento, uma alegria, uma felicidade,
como diz o filósofo, e não o estranhamento e a náusea diante do
novo.
E-mail - ninahort@uol.com.br
Texto Anterior: Vídeo/Lançamento: "Celebridades" é um dos filmes mais recorrentes de Woody Allen Próximo Texto: Mundo de Baco: Argentinos ocupam prateleiras nacionais Índice
|