São Paulo, sexta-feira, 02 de março de 2001

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GASTRONOMIA

Crista de galinha pode ser uma delícia

NINA HORTA
< COLUNISTA DA FOLHA

Theodore Zeldin, escritor inglês, fundador do Simpósio de Comida de Oxford, acha que a gastronomia é a arte de utilizar o alimento para criar felicidade. E que a maioria de nossos hábitos mentais é modelada sobre nossa reação diante da comida. Para ele, "en vol d'oiseau", existem maneiras diferentes de comer para alcançar o bom prazer.
A mais tradicional é comer até se saciar, se confortar. Comemos as receitas da terra, da avó, da mãe e estamos em terreno seguro. O nosso terreno. Não rompemos hábitos, tabus, não desrespeitamos regras, não desobedecemos ao proibido, não desafiamos o ameaçador. Nada de contatos com o "outro", o inimigo.
A outra maneira, além de trazer conforto, solução da fome, traz uma contribuição positiva à atitude diante da vida. Toda a invenção, todo o progresso, nasce de uma ligação entre idéias que jamais haviam sido ligadas. Aproximam-se dois corpos estranhos.
Para os indivíduos que tentam exercer essa criatividade, comer é ver o mundo com olhar novo. Os cozinheiros criativos descobrem misturas jamais sonhadas e convidam os que comem a partilhar com eles a sua coragem, a perder o medo do exótico e das bizarrices, perder o medo do outro.
Mas, há sempre um "mas", para ser audacioso, o cozinheiro tem de saber cozinhar ou, pelo menos, deve saber por intuição o que torna o ruim gostoso.
Toda essa vã filosofia me veio à cabeça ao assistir pela TV a vômitos em "close" de cabeças gosmentas de galinha e gafanhotos cascudos, estralando nos dentes dos participantes de "No Limite".
Adoro TV e adoro situações limites. No limite da fome, a criatividade se põe a funcionar violentamente. Pesca-se com guarda-chuva, faz-se sopa de folhas, salada de flores. Rolinhas e pombos voam direto dos pombais para a panela.
Não se pode negar, no entanto, que há gente que morre para não transgredir um tabu. Ingleses em terras geladas preferiram morrer a comer seus cachorros, e americanos em guerra entraram em estado de inanição para não compartilharem o menu de lagarto, grilo frito e perninha de rã.
Mas, neste programa de TV que vem fazendo sucesso no mundo todo, por que tratar a comida como castigo? Magoei, fiquei triste. Por que deixar o pessoal em dieta forçada, coisa que os faz inseguros, irritadiços, deprimidos? Por que viajar tão longe se a locação é um spa onde se consegue comida de um todo poderoso com métodos de gincana urbana? Por que não lutar pela sua própria comida como Robinson Crusoé?
Dirão que não estão preparados para tanto. E aquele Tarzan que nos apresentaram em "off" não pode ser um personal training dando uns tapinhas na arte de sobreviver, de descolar o rango com mais dignidade? Ganharia pontos o tatu mais gostoso, a galinhola mais crocante, o peixe cozido em folhas sob a terra, a passarinhada mais picante. Lembrem-se: no limite, vale tudo.
É uma brincadeira sem fim. Língua de flamingo, bochecha de bacalhau, cocô de alce, camarão vivo. Uma tribo brasileira, sem mais explicações, come terra, fósforos, aspirina, cinza e cânfora.
Toda essa gramática de comida pode ser aprendida como aprendemos o inglês. E o outro, o exótico, pode estar bem perto. Há um prato feito com cabeça, fígado, tripa, rins, bucho, canelas e o sangue do bode e um pouco de carne do próprio bode. Leva o nome de buchada e é servido a presidentes.
Faz parte de nosso alfabeto como fazem o "B" de beiço de boi, o "F" de formiga, o "G" de gato, o "D" de dobradinha, o "J" de jacaré na chapa, o "M" de miúdos de tartaruga, o "P" de piranha ou preá ensopadas.
Não temos nada a temer do vocabulário alheio já que o nosso é tão rico. Mas vamos parar de olhar a comida com essa perspectiva de nojo do "outro", considerando-o como aquele que se vomita. Temos medo do desconhecido, mas bem que poderíamos fazer um jogo que trouxesse aos participantes e a nós um divertimento, uma alegria, uma felicidade, como diz o filósofo, e não o estranhamento e a náusea diante do novo.
E-mail - ninahort@uol.com.br


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