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"NOSSA LINDA FAMÍLIA"
"Sitcom" é "Festa de Família" à francesa
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Impossível não aproximar o
francês "Sitcom - Nossa Linda Família" do dinamarquês "Festa de
Família", de Thomas Vinterberg,
apresentado no Brasil no ano passado, embora ambos tenham sido
realizados em 1998.
Tanto "Festa de Família" quanto
"Sitcom" apontam para a mesma
questão, a destruição da família, e
ambos buscam aproximações formais arrojadas para abordá-la. Em
"Festa de Família", impunham-se
os princípios do manifesto Dogma
95, a começar pelo uso constante
da câmera na mão. A instabilidade
da imagem e mesmo a "sujeira" da
fotografia subordinavam o que
víamos ali.
Em "Sitcom", o diretor e roteirista François Ozon parte de um gênero, as comédias de costumes da
TV, para diagnosticar o mal-estar
na família. Escolha não casual, já
que coloca como pressuposto a
vinculação entre a TV e esse mal-estar.
Estamos distantes das investidas
contraculturais dos anos 60 e 70. A
desintegração familiar não é, portanto, a da célula em torno da qual
se organiza a sociedade, nem existem nessa desintegração ecos políticos. Agora, são as relações pessoais que se desorganizam.
Em "Festa de Família" ainda
existe uma menção à hipocrisia familiar, aos segredos preservados
durante décadas (no caso, as relações incestuosas do pai com os filhos).
Em "Sitcom - Nossa Linda Família", mesmo esse aspecto é suprimido. No início, o que se vê é uma
família burguesa, aparentemente
ajustada, que gira em torno de Hélène, a mãe, mulher ajustada ao seu
mundo, mas deslocada na própria
família.
O diretor diz que o personagem
seria uma espécie de releitura da
Lana Turner de "Imitação da Vida" (1960) -aproximação no mínimo apropriada.
Cobaia
Todo o desajuste (a declaração
de homossexualidade do filho, a
tentativa de suicídio da filha etc.)
começa quando o pai, Jean, introduz na casa uma cobaia que parece
agir sobre os personagens.
Mas a cobaia é um vazio, um nada. O que importa é a completa ausência de transcendência nos fatos
que se registram num crescendo
assombroso (a exemplo das comédias de situação). Não estamos no
território da sociologia, nem da
psicanálise. Nada. "Sitcom" parece negar-se a procurar qualquer
significado exterior ao drama familiar que vai se desenrolar.
É esse aspecto que torna o filme
de François Ozon inquietante. As
coisas acontecem porque acontecem, assim como na comédia de
costumes. É como se elas existissem apenas para seguir as convenções de um gênero, com a diferença que as contrariam inteiramente,
na medida em que a situação se encaminha para a tragédia.
Se não tem a exuberância de
"Festa de Família", "Sitcom - Nossa Linda Família" tem a seu favor a
capacidade de dialogar com a TV,
veículo onde o conformismo é
uma virtude.
O diálogo do filme com a televisão é duro, como se seu objetivo
fosse nos lembrar que a TV, não
apenas por seu conteúdo, mas por
sua natureza, representa com muita frequência uma demissão do desejo.
Em "Sitcom", esta é a questão
central: a existência de uma lei a
que somos submetidos todos e que
contraria os impulsos humanos
mais profundos.
Filme: Sitcom - Nossa Linda Família
Produção: França, 1998
Direção: François Ozon
Com: Evelyne Dandry, François Marthouret
e Marina de Van
Quando: a partir de hoje, no Espaço
Unibanco 2
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