São Paulo, Sexta-feira, 02 de Abril de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"NOSSA LINDA FAMÍLIA"
"Sitcom" é "Festa de Família" à francesa

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Impossível não aproximar o francês "Sitcom - Nossa Linda Família" do dinamarquês "Festa de Família", de Thomas Vinterberg, apresentado no Brasil no ano passado, embora ambos tenham sido realizados em 1998.
Tanto "Festa de Família" quanto "Sitcom" apontam para a mesma questão, a destruição da família, e ambos buscam aproximações formais arrojadas para abordá-la. Em "Festa de Família", impunham-se os princípios do manifesto Dogma 95, a começar pelo uso constante da câmera na mão. A instabilidade da imagem e mesmo a "sujeira" da fotografia subordinavam o que víamos ali.
Em "Sitcom", o diretor e roteirista François Ozon parte de um gênero, as comédias de costumes da TV, para diagnosticar o mal-estar na família. Escolha não casual, já que coloca como pressuposto a vinculação entre a TV e esse mal-estar.
Estamos distantes das investidas contraculturais dos anos 60 e 70. A desintegração familiar não é, portanto, a da célula em torno da qual se organiza a sociedade, nem existem nessa desintegração ecos políticos. Agora, são as relações pessoais que se desorganizam.
Em "Festa de Família" ainda existe uma menção à hipocrisia familiar, aos segredos preservados durante décadas (no caso, as relações incestuosas do pai com os filhos).
Em "Sitcom - Nossa Linda Família", mesmo esse aspecto é suprimido. No início, o que se vê é uma família burguesa, aparentemente ajustada, que gira em torno de Hélène, a mãe, mulher ajustada ao seu mundo, mas deslocada na própria família.
O diretor diz que o personagem seria uma espécie de releitura da Lana Turner de "Imitação da Vida" (1960) -aproximação no mínimo apropriada.

Cobaia
Todo o desajuste (a declaração de homossexualidade do filho, a tentativa de suicídio da filha etc.) começa quando o pai, Jean, introduz na casa uma cobaia que parece agir sobre os personagens.
Mas a cobaia é um vazio, um nada. O que importa é a completa ausência de transcendência nos fatos que se registram num crescendo assombroso (a exemplo das comédias de situação). Não estamos no território da sociologia, nem da psicanálise. Nada. "Sitcom" parece negar-se a procurar qualquer significado exterior ao drama familiar que vai se desenrolar.
É esse aspecto que torna o filme de François Ozon inquietante. As coisas acontecem porque acontecem, assim como na comédia de costumes. É como se elas existissem apenas para seguir as convenções de um gênero, com a diferença que as contrariam inteiramente, na medida em que a situação se encaminha para a tragédia.
Se não tem a exuberância de "Festa de Família", "Sitcom - Nossa Linda Família" tem a seu favor a capacidade de dialogar com a TV, veículo onde o conformismo é uma virtude.
O diálogo do filme com a televisão é duro, como se seu objetivo fosse nos lembrar que a TV, não apenas por seu conteúdo, mas por sua natureza, representa com muita frequência uma demissão do desejo.
Em "Sitcom", esta é a questão central: a existência de uma lei a que somos submetidos todos e que contraria os impulsos humanos mais profundos.

Filme: Sitcom - Nossa Linda Família Produção: França, 1998 Direção: François Ozon Com: Evelyne Dandry, François Marthouret e Marina de Van Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco 2


Texto Anterior: Cinema - "Labirinto de Paixões": Almodóvar usa preconceito contra o preconceito
Próximo Texto: "Pela Vida de um Amigo": Culpa ganha cara no fim
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.