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NELSON ASCHER
A revolta dos anti-Édipos
As relações entre ex-metrópoles e ex-colônias, mesmo séculos depois de abolidos
seus vínculos formais, costumam
se caracterizar, de ambos os lados, por sentimentos que oscilam
entre o amor e o ódio, entre o orgulho e o desdém. Embora haja
uma diferença entre a colonização na qual os recém-chegados
repovoam um território cuja população anterior foi dizimada
por massacres ou pestilências e
aquela que consiste na imposição
de uma nova classe dominante a
uma maioria de nativos, quanto
mais se prolonguem, mais ambas
as variantes se confundem.
Não existe quase nenhum lugar
no globo cujos habitantes sejam
apenas ou preponderantemente
os originais e, em qualquer ex-colônia, os invasores ou imigrantes
mais recentes não passam do último estrato que se sobrepôs aos colonizadores precedentes. O homem é um bicho migratório e a
história de sua expansão demográfica e territorial, bem como a
do adensamento de suas inter-relações planetárias, pode ser descrita como a da progressiva e infindável globalização. Não é à
toa, portanto, que a retórica do
anticolonialismo, associada hoje
em dia às pseudocategorias dos
estudos pós-coloniais, soa tão superficial, quando não enviesada,
pois, tentando separar com uma
linha nítida os heróis oprimidos
dos vilões opressores, ela chega a
uma simplificação oportunista
que só convém às intenções políticas deste ou daquele grupo.
A acreditar nessa retórica, todos
os encontros, desencontros, conflitos, mesclas e sínteses entre povos
decorrentes do deslocamento geográfico de pelo menos um deles
resumem-se a um modelo segundo o qual conquistadores predatórios se apossam de terras
alheias, escravizando ou exterminando seus legítimos e eternos
proprietários, que, além disso, como comunidade orgânica e
enraizada que seriam, viviam
num Estado-nação etnicamente
homogêneo e democrático. Se algo semelhante tiver ocorrido, terá
sido decerto a exceção.
Poucas coisas ilustram melhor
as complexidades acima do que o
nem tão estranho rancor que
muitos ex-colonizadores nutrem
por suas ex-colônias. Esse complexo de Édipo às avessas talvez seja
um dos fatores determinantes do
atual caos geopolítico, pois muitas entre as paixões destrutivas
que nele fervilham contrapõem
justamente povos, etnias, nações e
religiões que estão, estiveram ou
se julgam próximos uns dos outros. Assim, se o anti-semitismo
que, praticado sob o rótulo hipócrita do anti-sionismo, ressurge
agora na Europa (aparentemente) pós-cristã e tem se generalizado entre os muçulmanos exemplifica antes uma síndrome agudamente edípica, a revolta contemporânea do islã contra o Ocidente
tem mais de seu contrário.
A raiva islâmica em relação ao
Ocidente advém não tanto da distância e da diferença quanto da
proximidade espaço-temporal
mútua e da semelhança entre
ambos os universos conceituais
adjacentes, originando-se menos
no breve intervalo durante o qual
europeus dominaram o norte da
África e parte do Oriente Médio
do que nos longos séculos nos
quais o imperialismo muçulmano se expandiu militarmente por
amplas extensões da cristandade,
convertendo seus súditos e ameaçando os vizinhos. Ao ressentimento de uma civilização imperial confinada ao segundo plano
associa-se o de massas islâmicas
que, tendo migrado rumo à Europa em busca de condições melhores, acham-se, como nunca antes
em tamanha quantidade, reduzidas pelos "infiéis" a cidadãos de
segunda classe.
O fenômeno em questão não se
detém, contudo, na singularidade
desse entrechoque. As relações
transatlânticas começam também a se assemelhar às islâmico-ocidentais, pois não é o Novo
Mundo que se tem mostrado irritado com o Velho, mas, sim, a Europa, sobretudo com os EUA. É
ela que mal consegue disfarçar o
quanto tem sido relegada, no plano internacional, a um papel secundário, que a humilha, e em
nada atenua tal humilhação o fato de que sua mutilação seja auto-infligida, pois, afinal, não há
tantos continentes que tenham
tentado, em um único século, suicidar-se duas vezes. Caso se acrescente a essas duas tentativas, uma
terceira, contemporânea, que se
compõe de natalidade declinante,
da incapacidade de absorver e assimilar adequadamente os imigrantes necessários, do abandono
da predisposição ao risco e da meritocracia combinado com a adoção generalizada de uma mentalidade de funcionário público,
compreende-se que as chances de
os europeus alcançarem econômica, cultural ou cientificamente
seus rivais transoceânicos seja, na
melhor das hipóteses, bastante remota.
Que o epicentro dessa ira se encontre na França parece, à primeira vista, curioso. Acontece que
os ex-colonizadores dos Estados
Unidos, ou seja, os ingleses superaram seus complexos perante a
ex-colônia por meio de uma relação especial cimentada em duas
guerras e, principalmente, graças
ao notável desempenho britânico
na segunda delas, desempenho
esse que envolveu sua decadência
num manto de grandeza. O ressentimento alemão e russo, subproduto do que os norte-americanos fizeram para salvar, primeiro,
os russos dos alemães e, em seguida, os alemães dos russos, são, por
seu turno, temperados pelas derrotas decisivas de 1945 e 1989. Já
os franceses, que dificilmente perdoarão dois resgates, ocuparam
uma espécie de vácuo psicológico
e, não dispondo (sem querer desmerecer o Québec, a Martinica ou
o Senegal) de nenhuma antiga
possessão importante, adotaram
os Estados Unidos como sua ex-colônia e é por isso que os tratam
com todo o rancor antiedípico de
que são capazes.
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