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São Paulo, segunda-feira, 02 de junho de 2003

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NELSON ASCHER

A revolta dos anti-Édipos

As relações entre ex-metrópoles e ex-colônias, mesmo séculos depois de abolidos seus vínculos formais, costumam se caracterizar, de ambos os lados, por sentimentos que oscilam entre o amor e o ódio, entre o orgulho e o desdém. Embora haja uma diferença entre a colonização na qual os recém-chegados repovoam um território cuja população anterior foi dizimada por massacres ou pestilências e aquela que consiste na imposição de uma nova classe dominante a uma maioria de nativos, quanto mais se prolonguem, mais ambas as variantes se confundem.
Não existe quase nenhum lugar no globo cujos habitantes sejam apenas ou preponderantemente os originais e, em qualquer ex-colônia, os invasores ou imigrantes mais recentes não passam do último estrato que se sobrepôs aos colonizadores precedentes. O homem é um bicho migratório e a história de sua expansão demográfica e territorial, bem como a do adensamento de suas inter-relações planetárias, pode ser descrita como a da progressiva e infindável globalização. Não é à toa, portanto, que a retórica do anticolonialismo, associada hoje em dia às pseudocategorias dos estudos pós-coloniais, soa tão superficial, quando não enviesada, pois, tentando separar com uma linha nítida os heróis oprimidos dos vilões opressores, ela chega a uma simplificação oportunista que só convém às intenções políticas deste ou daquele grupo.
A acreditar nessa retórica, todos os encontros, desencontros, conflitos, mesclas e sínteses entre povos decorrentes do deslocamento geográfico de pelo menos um deles resumem-se a um modelo segundo o qual conquistadores predatórios se apossam de terras alheias, escravizando ou exterminando seus legítimos e eternos proprietários, que, além disso, como comunidade orgânica e enraizada que seriam, viviam num Estado-nação etnicamente homogêneo e democrático. Se algo semelhante tiver ocorrido, terá sido decerto a exceção.
Poucas coisas ilustram melhor as complexidades acima do que o nem tão estranho rancor que muitos ex-colonizadores nutrem por suas ex-colônias. Esse complexo de Édipo às avessas talvez seja um dos fatores determinantes do atual caos geopolítico, pois muitas entre as paixões destrutivas que nele fervilham contrapõem justamente povos, etnias, nações e religiões que estão, estiveram ou se julgam próximos uns dos outros. Assim, se o anti-semitismo que, praticado sob o rótulo hipócrita do anti-sionismo, ressurge agora na Europa (aparentemente) pós-cristã e tem se generalizado entre os muçulmanos exemplifica antes uma síndrome agudamente edípica, a revolta contemporânea do islã contra o Ocidente tem mais de seu contrário.
A raiva islâmica em relação ao Ocidente advém não tanto da distância e da diferença quanto da proximidade espaço-temporal mútua e da semelhança entre ambos os universos conceituais adjacentes, originando-se menos no breve intervalo durante o qual europeus dominaram o norte da África e parte do Oriente Médio do que nos longos séculos nos quais o imperialismo muçulmano se expandiu militarmente por amplas extensões da cristandade, convertendo seus súditos e ameaçando os vizinhos. Ao ressentimento de uma civilização imperial confinada ao segundo plano associa-se o de massas islâmicas que, tendo migrado rumo à Europa em busca de condições melhores, acham-se, como nunca antes em tamanha quantidade, reduzidas pelos "infiéis" a cidadãos de segunda classe.
O fenômeno em questão não se detém, contudo, na singularidade desse entrechoque. As relações transatlânticas começam também a se assemelhar às islâmico-ocidentais, pois não é o Novo Mundo que se tem mostrado irritado com o Velho, mas, sim, a Europa, sobretudo com os EUA. É ela que mal consegue disfarçar o quanto tem sido relegada, no plano internacional, a um papel secundário, que a humilha, e em nada atenua tal humilhação o fato de que sua mutilação seja auto-infligida, pois, afinal, não há tantos continentes que tenham tentado, em um único século, suicidar-se duas vezes. Caso se acrescente a essas duas tentativas, uma terceira, contemporânea, que se compõe de natalidade declinante, da incapacidade de absorver e assimilar adequadamente os imigrantes necessários, do abandono da predisposição ao risco e da meritocracia combinado com a adoção generalizada de uma mentalidade de funcionário público, compreende-se que as chances de os europeus alcançarem econômica, cultural ou cientificamente seus rivais transoceânicos seja, na melhor das hipóteses, bastante remota.
Que o epicentro dessa ira se encontre na França parece, à primeira vista, curioso. Acontece que os ex-colonizadores dos Estados Unidos, ou seja, os ingleses superaram seus complexos perante a ex-colônia por meio de uma relação especial cimentada em duas guerras e, principalmente, graças ao notável desempenho britânico na segunda delas, desempenho esse que envolveu sua decadência num manto de grandeza. O ressentimento alemão e russo, subproduto do que os norte-americanos fizeram para salvar, primeiro, os russos dos alemães e, em seguida, os alemães dos russos, são, por seu turno, temperados pelas derrotas decisivas de 1945 e 1989. Já os franceses, que dificilmente perdoarão dois resgates, ocuparam uma espécie de vácuo psicológico e, não dispondo (sem querer desmerecer o Québec, a Martinica ou o Senegal) de nenhuma antiga possessão importante, adotaram os Estados Unidos como sua ex-colônia e é por isso que os tratam com todo o rancor antiedípico de que são capazes.


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