São Paulo, segunda-feira, 02 de julho de 2001

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MÚSICA/CRÍTICA

Saudades de Karlheinz Stockhausen

ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A arte é longa... longa... longa... e a vida é breve. Entende-se por que muita gente deve ter ido embora no intervalo do concerto de Karlheinz Stockhausen, sábado, no Moinho. Perderam a chance de escutar "Kontakte", longa e antológica peça do repertório eletroacústico. Mas, depois de "Oktophonie", cada um teria seus motivos para deixar a cadeira vazia -entre eles, preservar a memória do melhor Stockhausen, que sua música recente só faz diminuir.
Composta em 1999, "Oktophonie" faz parte da ópera "Terça-Feira", que por sua vez integra um ciclo de sete, reunidas em "Luz". Desde 1977, ele trabalha nessa semana inteira de óperas, cujo assunto é ele mesmo: seu nascimento na estrela Sírius, sua vinda à Terra para promover um entendimento entre humanos e o cosmos etc. Para 2003, está marcada a estréia de "Quarta-Feira", na Suíça.
Não é fácil levar a sério o criador dessa automitologia. No mundo já rarefeito da música contemporânea, são poucos os que ainda cultivam o compositor de "Gesang der Jünglinge" (1956) e "Gruppen" (1957), entre outras grandes peças do pós-serialismo.
O que não significa uma diminuição de sua popularidade. Pelo contrário, Stockhausen tornou-se agora, além de mitologia, indústria: o site www.stockhausen.org é o vendedor exclusivo dos 62 CDs de sua música, a Stockhausen Verlag edita suas partituras, a Fundação Stockhausen dedica-se "ao progresso da musicologia (...) baseado na obra do professor Karlheinz Stockhausen".
Significa, sim, uma mudança de público. Não deixa de ser um alento para a música contemporânea ver Tiazinha na platéia, escutando "Oktophonie". Mas é triste notar a ausência de compositores e intérpretes que, há alguns anos, não perderiam por nada um concerto desses.
"Oktophonie", presumivelmente, tem função dramática na ópera. Foi tocada no escuro. Ela é "octofônica" porque o som se divide entre oito grupos de alto-falantes, distribuídos de lado a lado e de alto a baixo do auditório. De lado a lado não é novidade, mas de alto a baixo, sim. Cabe a nós educar o ouvido para perceber musicalmente as diferenças.
A figura principal de "Oktophonie" é exatamente a passagem do que está no fundo para o que está no alto, com todas as conotações que se quiser. Um sino eletrônico dá início à primeira parte e se repete na segunda, que refaz a meia-hora inicial por outros caminhos. Uma nota gravíssima se faz escutar do início ao fim; mudanças de altura desse pedal correspondem a modulações, ou mudanças de campo harmônico. Mais que wagnerianamente lentas.
Nos anos 50 e 60, ele acolhia elementos do jazz no abraço generoso e genial de sua música. Agora abriga o rock com igual generosidade. Sua idéia de textura e sua noção de tempo continuam únicas e fazem, do que vem do rock, um entre outros atores na vastidão de intemporalidades.
Há espaço para um breve quase-canto oriental. Há muito para os assobios, "glissandos" e chiados, que são como o solfejo da eletroacústica. Certos sons vão se transformando em outros, que se transformam em outros. Texturas se adensam vagarosamente, depois afinam, até a nota final, que se perde na altura e na distância.
O pior que se pode dizer de "Oktophonie" é que tudo isso soa como trilha sonora, para um drama imaginário qualquer. O melhor que se pode dizer é o mesmo, com alguns bônus por momentos de sonoridade inspirada.
A platéia aplaudiu por educação e seguiu gelada para o cafezinho. Dúvida difícil: voltar ou não, para escutar "Kontakte" (de 1960)?
O crítico, entre outros, preferiu continuar vivendo só com a memória dessa música arrojada e inaugural. O que há de força em "Oktophonie" vem da arte antiga do próprio Stockhausen; e não é impossível que a nova, de sua parte, estrague um pouco a anterior.
Saudades de Stockhausen.


Avaliação:  

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