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CONTARDO CALLIGARIS
A corrida de Vanderlei Cordeiro de Lima
Vanderlei Cordeiro de Lima estava muito bem colocado para ganhar a maratona da
Olimpíada de Atenas; depois de
36 quilômetros, corria com quase
40 segundos de vantagem.
Foi agredido, parado e derrubado pelo ex-padre Cornelius Horan, que estava ansioso por comunicar ao mundo sua mensagem. Fato incrível, Vanderlei encontrou a força e a concentração
necessárias para retomar a corrida e conquistou o bronze.
Quanto a Horan, ele pagou
uma fiança e, nesta altura, deve
estar de volta à Inglaterra, acalmado pela breve prisão e por um
antipsicótico. Se eu fosse juiz em
Atenas, teria condenado o ex-padre Horan a correr uma maratona inteira movido a pontapés no
traseiro. Isso, se fosse possível encontrar alguém que tivesse o fôlego para ficar atrás dele e lhe administrar a punição.
Durante dois anos de minha vida, pratiquei esporte de competição (nada de olímpico, apenas
campeonatos universitários).
Basta-me para ter uma idéia do
que é o treino de um atleta como
Vanderlei. Nada a ver com malhar para ficar bonito ou saudável. Certo, há o projeto de correr
mais rápido que os outros, mas,
no fundo, treinar é uma ascese
que dispensa a promessa do paraíso ou da vitória. O treino é como uma obra de arte clássica; sua
beleza está em sua aparente futilidade, no exercício de uma disciplina que não tem finalidade externa. O treino não transmite nenhuma mensagem urgente; ele
"apenas" diz da capacidade humana de se engajar numa tarefa
difícil. Por isso o treino é um
exemplo moral: ensina que, para
se dedicar a viver, não é preciso
que a vida tenha um sentido.
Agora, imaginemos que o ex-padre Horan seja um profeta menos louco e confuso. Imaginemos
que sua mensagem encontre nossa aprovação: qualquer coisa,
desde o genocídio em curso no Sudão até a Aids na África ou a
guerra no Iraque. Mais próximo
do que ele mesmo deve pensar,
imaginemos que se trate de uma
espécie de segredo de Fátima que
ele seria encarregado de transmitir e que poderia, se fosse escutado, tocar os corações de todos nós.
Pois é, você dirá, muito legal,
seu Horan. Mas por que escolher
logo aquele momento, com um
maratonista brasileiro em primeira posição? Por que não foi
para Nova York protestar na calçada da convenção do Partido
Republicano?
Fora que, em Nova York, nestes
dias, não faltam "Horans" de todo tipo, parece que o ex-padre
tem um interesse específico por esporte. Já interveio numa corrida
de Fórmula 1 e em jogos de rúgbi.
A competição esportiva deve ser
o protótipo do que ele quer atrapalhar: "Parem de desperdiçar
suas energias no esforço de correr
ou bater bola; parem de torcer pelos atletas de seu coração. Acordem e façam algo mais útil para
suas almas e para seus semelhantes".
Se o ex-padre Horan se dispusesse a escutar minha resposta, o
que eu lhe diria?
Meus primeiros argumentos seriam uma defesa da vida concreta diante de exigências morais
absolutas. É possível, eu diria ao
ex-padre Horan, se importar com
a guerra no Iraque e o genocídio
no Sudão sem parar de viver histórias de amor, de ler romances,
de tomar "capuccinos" na esquina, de cortar o cabelo, de treinar e
de correr na próxima maratona.
Tentaria explicar ao ex-padre
Horan que, certo, concordo: há
coisas justas e coisas erradas e há
coisas mais morais do que outras.
Mas a vida, para nós, não é orientada por uma aspiração ou por
um critério absoluto. Nossas escolhas são relativas não porque valeriam hoje e não amanhã, mas
porque são concretas, relacionadas (é esse o sentido de nosso "relativismo") a realidades complexas e incertas, a do mundo e a
nossa.
No entanto essas explicações
conciliatórias talvez sejam enganosas. De fato, por concretas e incertas que sejam minhas escolhas
morais, sei reconhecer a imoralidade. Pois acontece que a incerteza moral não é um "laissez-faire"
ou uma forma de indiferença. Ao
contrário, ela é para mim um valor essencial.
A meu ver, o ex-padre Horan,
que não pesa na mesma balança
a beleza da corrida de Vanderlei e
a necessidade de conclamar sua
fé, deu prova de uma inabalável
certeza, que é o pecado moral supremo.
Em suma, a luta de Horan e
Vanderlei é (como deve pensar
Horan) a luta do bem contra o
mal, só que (à diferença do que
pensa Horan), nessa luta, Vanderlei é do bem, e Horan é do mal.
Nota, em clima de convenção
do Partido Republicano em Nova
York: é possível contrapor dezenas de razões pelas quais o governo americano devia ou não derrubar Saddam Hussein. Sempre
há espaço para discutir sobre o
certo e o errado. Mas o intolerável, o que é irremediavelmente errado, é a certeza moral com a
qual a decisão foi argumentada.
Disse que a certeza moral é, para mim, o pecado moral supremo.
Supremo, mas não por isso absoluto; a tal ponto que, justamente,
posso desculpar o ex-padre Horan, porque entendo que seu gesto
é o resultado da imponderável cadeia dos eventos concretos que
constituem, banalmente, uma vida.
A Vanderlei, que conseguiu
continuar a correr e sorrir no pódio, vão as felicitações e a glória
devidas a um verdadeiro campeão.
ccalligari@uol.com.br
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