São Paulo, quinta, 2 de outubro de 1997.




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Pilhagem nazista pode estar no Brasil

do enviado especial a Paris

Autor do livro "O Museu Desaparecido" (lançado na França e nos EUA), o jornalista Hector Feliciano é um especialista em obras de arte pilhadas pelos nazistas. Foi ele quem descobriu que os manuscritos medievais postos à venda por Daniel Wildenstein haviam sido roubados de Alphonse Kann pelos nazistas durante a Segunda Guerra. Leia abaixo trecho da entrevista concedida à Folha.

Folha - Como os nazistas negociavam as obras de arte pilhadas?
Hector Feliciano -
Na França, as obras eram confiscadas e levadas para o Jeu de Paume (museu em Paris), onde uma equipe de 60 pessoas (historiadores de arte, fotógrafos e experts) faziam uma seleção. As obras iam para a Alemanha ou para coleções particulares de líderes nazistas (Hitler, por exemplo), quando atingiam seus gostos pessoais, ou para museus alemães, quando se enquadravam na estética nazista. O que não interessava era posto à venda.
Folha - Que obra se encaixava na estética nazi e qual era vendável?
Feliciano -
Eles se interessavam pela arte clássica, pelos mestres antigos e, sobretudo, pelo que era alemão ou de origem germânica, como a arte austríaca, holandesa e flamenga. Tudo o que era arte moderna, a grosso modo, o que havia sido produzido após 1840/50 (impressionista, pós-impressionistas, modernos etc.), não os interessava. Essas transações eram feitas no mercado parisiense ou suíço.
Folha - Como elas funcionavam?
Feliciano -
Marchands independentes, que trabalhavam com os alemães no Jeu de Paume, selecionavam os quadros para negociar. Para a Suíça, os quadros eram transportados na mala diplomática alemã. A Suíça era um país neutro que tinha muito dinheiro, pois negociava com todo mundo na época, tinha uma economia estável, um mercado real, com colecionadores, marchands e museus.
Folha - Qual a relação dos marchands com os nazistas?
Feliciano -
A maior parte deles era ligada ao nazismo, mas, antes de tudo, eram comerciantes que queriam negociar. Eles sabiam de onde vinham essas obras, sabiam que tinham sido confiscadas, que, em muitos casos, pertenciam a vítimas que tinham sido mandadas para campos de concentração.
Folha - Qual o papel dos países aliados ou neutros nesse tráfico?
Feliciano -
Durante a guerra funcionava um comércio triangular. Muitas vezes, as obras eram enviadas para Brasil ou Argentina, onde ficavam algumas semanas e, mais tarde, enviadas para os EUA. Muita gente fechou os olhos na América do Sul e do Norte.
Depois da guerra, muitos colecionadores americanos começaram a comprar, surgiram museus novos, outros ampliaram sua coleções. O mercado de arte mudou de Paris para Nova York, onde surgia uma enorme demanda. A partir dos anos 50, quadros escondidos migraram para a América, com uma suposta virgindade. Foi como uma lavagem de dinheiro.
O absurdo é que ninguém pesquisou sobre a propriedade dos quadros. Os vendedores, colecionadores, marchands, conservadores de museus se preocupavam em saber se o Picasso era realmente um Picasso. Nunca se preocuparam em saber de onde ele vinha.
Folha - O sr. acredita que existam obras pilhadas pelos nazistas em coleções ou museus brasileiros?
Feliciano -
Achei obras pilhadas expostas em museus e coleções suíças, espanholas, alemãs e americanas. Elas estão espalhadas por todos os lugares. Como Brasil e Argentina se prestaram a esses comércios triangulares, pode ser que haja coisas lá. Além disso, o Masp e outros museus brasileiros foram feitos após a guerra.
Folha - Como saber se um quadro foi confiscado pelos nazistas?
Feliciano -
A maioria é de bons quadros de pintores sobre os quais há enorme literatura, monografias, catálogo raisonné, que podem ter sua história de propriedade retraçada. Podemos saber que tal quadro foi pintado por Picasso em seu ateliê em 1912, comprado pelo marchand tal, que o vendeu ao colecionador tal, que o revendeu a outro colecionador.
Além disso, os alemães fizeram inventários das 203 grandes coleções confiscadas na França, geralmente de judeus e maçons. Esses inventários são bem detalhados.



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