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"O REI ESTÁ VIVO"
Quarta produção do Dogma tem beleza e rigor, mas se perde em psicologismo
LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Kristian Levring é o quarto
dinamarquês a enfrentar o
desafio do manifesto Dogma 95,
na direção do longa-metragem
"O Rei Está Vivo".
Trata-se de obedecer à camisa-de-força da câmera na mão, da luz
natural, da ausência de música, da
película colorida e outras regras
rígidas. Tudo para atingir o objetivo (louvável) da construção de
um estilo marcado e coeso, alimentado pelo desejo (bem mais
corriqueiro) de originalidade, disfarçado sob a fórmula da "verdade escondida".
Em "O Rei Está Vivo", o esforço
resulta numa superfície deslumbrante com um recheio insosso.
Quase nada se sabe dos personagens: são 11 turistas brancos, de
origem inglesa, francesa e sul-africana, num ônibus dirigido por
um chofer negro, que cruza um
deserto africano.
Também nada se aclara sobre
esse deserto, que pode ser em
qualquer lugar da África (apenas
nos créditos finais se indicam as
locações na Namíbia).
Assim, o filme já começa na base dos estereótipos: brancos
opressores versus negros oprimidos, o que não chega a ser uma
deficiência em si -embora seja
lamentável o uso do ótimo ator
Vusi Kunene para o papel de um
negro submisso, sem personalidade e quase destituído de fala.
O desenrolar da história, porém, bate de frente com um dos
principais mandamentos do Dogma 95, que é a recusa dos gêneros.
Pois estamos diante de um dos gêneros mais explorados pelo cinema americano: o dos viajantes
perdidos no deserto -ou na neve, ou no mar, ou na ilha deserta
etc..
O ônibus escapa da rota e fica
sem combustível num vilarejo
abandonado. E então os personagens entregam-se à árdua e previsível luta pela sobrevivência, na
qual o homem torna-se o lobo do
homem.
Mas também aqui o clichê não
significa um handicap. Ao contrário: no absurdo da terra de ninguém, do sol, da areia sem fim, da
solidão incontornável, Levring
capta aquilo que os expressionistas chamavam de "paisagens da
alma", incompreensíveis, impenetráveis em sua beleza impositiva e inútil.
No deserto, tira-se partido pleno da imprecisão da imagem videográfica digital, transferida
com seu flou, sua cor estourada e
sua rapidez de movimento e corte
para a película de 35 mm.
Sob o silêncio, as dunas brilham
num amarelo de ouro falso, as casas abandonadas reluzem em seu
branco fantasmagórico. À noite, a
luz localizada em faróis e lanternas também provoca o efeito expressionista semi-abstrato, que
tão bem reflete a confusão dos espíritos.
A idéia que tem um dos personagens de encenar, com os companheiros de azar, o clássico "Rei
Lear", de Shakespeare, para passar o tempo, também não seria
má, se não acabasse servindo afinal para revelar a "verdade" dos
personagens.
Por nobre que seja o desejo do
diretor, expresso em entrevista,
de introduzir "um microscópio
na alma" de seus atores, o resultado de tal prospecção não é mais
que banal, embora no elenco estejam nomes como Jennifer Jason
Leigh e Romane Bohringer.
Uma das mulheres tenta trair o
marido com o chofer negro, que
se vê insultado por um sul-africano racista. Um outro executivo,
constantemente cioso de sua forma física, é desancado pela moça
com quem acaba de fazer amor,
sob acusação de machismo. "Você só pensa em você!" é a frase desesperada de uma outra mulher a
seu marido, num dos momentos
mais pobres dos diálogos.
O que desconcerta neste filme
bonito e rigoroso é justamente
constatar que tais frases e comportamentos preconceituosos são
perfeitamente encontráveis, por
exemplo, numa simples conversa
de bar.
Não há necessidade de deserto
ou de Shakespeare para mostrar a
pobreza da alma humana.
Imagino como seria se Levring
tivesse descartado o psicologismo
e mostrado apenas a brutal dissolução, no sol e na areia, daqueles
corpos sem alma.
O Rei Está Vivo
The King Is Alive
Direção: Kristian Levring
Produção: Dinamarca/EUA/ Suécia,
2000
Com: Miles Anderson, Jennifer Jason
Leigh, Romane Bohringer, Janet McTeer,
David Bradley, Vusi Kunene, Peter
Kubheka, Brion James
Quando: a partir de hoje nos cines
Espaço Unibanco 1, Lumière 2 e
Cinearte 1
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