São Paulo, quinta-feira, 02 de novembro de 2000

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"O REI ESTÁ VIVO"
Quarta produção do Dogma tem beleza e rigor, mas se perde em psicologismo

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Kristian Levring é o quarto dinamarquês a enfrentar o desafio do manifesto Dogma 95, na direção do longa-metragem "O Rei Está Vivo".
Trata-se de obedecer à camisa-de-força da câmera na mão, da luz natural, da ausência de música, da película colorida e outras regras rígidas. Tudo para atingir o objetivo (louvável) da construção de um estilo marcado e coeso, alimentado pelo desejo (bem mais corriqueiro) de originalidade, disfarçado sob a fórmula da "verdade escondida".
Em "O Rei Está Vivo", o esforço resulta numa superfície deslumbrante com um recheio insosso.
Quase nada se sabe dos personagens: são 11 turistas brancos, de origem inglesa, francesa e sul-africana, num ônibus dirigido por um chofer negro, que cruza um deserto africano.
Também nada se aclara sobre esse deserto, que pode ser em qualquer lugar da África (apenas nos créditos finais se indicam as locações na Namíbia).
Assim, o filme já começa na base dos estereótipos: brancos opressores versus negros oprimidos, o que não chega a ser uma deficiência em si -embora seja lamentável o uso do ótimo ator Vusi Kunene para o papel de um negro submisso, sem personalidade e quase destituído de fala.
O desenrolar da história, porém, bate de frente com um dos principais mandamentos do Dogma 95, que é a recusa dos gêneros. Pois estamos diante de um dos gêneros mais explorados pelo cinema americano: o dos viajantes perdidos no deserto -ou na neve, ou no mar, ou na ilha deserta etc..
O ônibus escapa da rota e fica sem combustível num vilarejo abandonado. E então os personagens entregam-se à árdua e previsível luta pela sobrevivência, na qual o homem torna-se o lobo do homem.
Mas também aqui o clichê não significa um handicap. Ao contrário: no absurdo da terra de ninguém, do sol, da areia sem fim, da solidão incontornável, Levring capta aquilo que os expressionistas chamavam de "paisagens da alma", incompreensíveis, impenetráveis em sua beleza impositiva e inútil.
No deserto, tira-se partido pleno da imprecisão da imagem videográfica digital, transferida com seu flou, sua cor estourada e sua rapidez de movimento e corte para a película de 35 mm.
Sob o silêncio, as dunas brilham num amarelo de ouro falso, as casas abandonadas reluzem em seu branco fantasmagórico. À noite, a luz localizada em faróis e lanternas também provoca o efeito expressionista semi-abstrato, que tão bem reflete a confusão dos espíritos.
A idéia que tem um dos personagens de encenar, com os companheiros de azar, o clássico "Rei Lear", de Shakespeare, para passar o tempo, também não seria má, se não acabasse servindo afinal para revelar a "verdade" dos personagens.
Por nobre que seja o desejo do diretor, expresso em entrevista, de introduzir "um microscópio na alma" de seus atores, o resultado de tal prospecção não é mais que banal, embora no elenco estejam nomes como Jennifer Jason Leigh e Romane Bohringer.
Uma das mulheres tenta trair o marido com o chofer negro, que se vê insultado por um sul-africano racista. Um outro executivo, constantemente cioso de sua forma física, é desancado pela moça com quem acaba de fazer amor, sob acusação de machismo. "Você só pensa em você!" é a frase desesperada de uma outra mulher a seu marido, num dos momentos mais pobres dos diálogos.
O que desconcerta neste filme bonito e rigoroso é justamente constatar que tais frases e comportamentos preconceituosos são perfeitamente encontráveis, por exemplo, numa simples conversa de bar.
Não há necessidade de deserto ou de Shakespeare para mostrar a pobreza da alma humana.
Imagino como seria se Levring tivesse descartado o psicologismo e mostrado apenas a brutal dissolução, no sol e na areia, daqueles corpos sem alma.


O Rei Está Vivo
The King Is Alive
   
Direção: Kristian Levring Produção: Dinamarca/EUA/ Suécia, 2000 Com: Miles Anderson, Jennifer Jason Leigh, Romane Bohringer, Janet McTeer, David Bradley, Vusi Kunene, Peter Kubheka, Brion James Quando: a partir de hoje nos cines Espaço Unibanco 1, Lumière 2 e Cinearte 1




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