São Paulo, segunda, 2 de novembro de 1998

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Brasil caminha para o penta em pacote econômico

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha ² O novo pacote econômico me pegou no meio da leitura de uma trilogia de Manuel Castells sobre a era da informação.
Meu interesse não se resumia aos efeitos econômicos da revolução digital, mas também à questão da identidade, que estudo em outro nível nas obras de um filósofo que merecia ser traduzido em português, Charles Taylor.
Quando o pacote surgiu, deixei o livro de Castells de lado, um pouco injustamente. Ele menciona esse movimento meio recorrente de euforia consumista seguida de um aperto econômico, como houve na Espanha em 92 e depois no México e na Argentina.
Aqui não só conhecemos essa história como a nossa memória de planos econômicos talvez seja uma das mais ricas do mundo. Vendo o ministro Malan falar na televisão, lembrei-me de outras faces: Funaro, Bresser, Zélia, todos eles nos chamando ao sacrifício e nos prometendo um país organizado e estável no final do túnel.
Se a memória não me falha, o Plano Cruzado foi reformado logo depois das eleições de 86, depois de uma retumbante vitória eleitoral do PMDB. Eu repousava em Porto Seguro, derrotado nas urnas, e a inflação que nos preocupava no momento era a de mosquitos. Minha filha era uma menininha e gostava de seguir os funcionários da pousada Casa Azul que dedetizavam todos os cômodos antes do anoitecer.
Comíamos um delicioso mamão do sul da Bahia e tomávamos água-de-coco. Era uma pausa necessária para recobrar as forças. Não para voltar à luta política, mas para administrar a ansiedade dos credores de inúmeras continhas que aparecem depois das eleições, principalmente aquelas que aparecem depois que perdemos.
O Plano Collor me pegou de calça na mão. Zélia dizia que não precisávamos nos preocupar, porque todos teriam direito a 50 cruzados. Mas e quem não tinha 50 cruzados, a quem recorrer se todos subitamente ficaram pobres?
Foi um momento de suprema dureza, semelhante a outros vividos fora do Brasil, com a diferença de que em todos os casos havia gente com dinheiro em volta de você. Depois do Plano Collor, estavam todos duros ou, pelo menos, com uma excelente razão para proclamar sua dureza.
A capacidade de sobreviver ao longo desses planos nos dá uma sensação de que acabaremos saindo deles. Nossa crise final como indivíduos está parecendo a crise final do capitalismo: sempre anunciada, sempre adiada para um próximo momento. No entanto, olhando para trás vemos que muitos foram atingidos em cheio, sobretudo pelo Plano Collor, particularmente cruel. Gente que morreu de aflição, que enlouqueceu, que deixou de se operar, que perdeu as economias conquistadas com trabalho duro -a galeria de horrores se estendia ao penteado da ministra, falando horas na televisão.
O primeiro plano que tive a oportunidade de examinar com modesto poder de influência foi apenas um esboço de plano: aquelas 51 medidas destinadas a atenuar o impacto da crise asiática.
Foi exatamente ali que percebi como o raciocínio econômico precisava de múltiplos interlocutores. Muitas medidas, como as que cortavam ajuda a portadores de deficiência, entravam em choque direto com a política de direitos humanos. Outras, como a alta taxa de embarque nos aeroportos, potencialmente poderiam representar o contrário do que almejavam.
Foi ali também que percebi como todos nós, de uma certa forma, avançamos no sentido de dar mais importância ao estudo da economia, de tal forma que quase todo mundo hoje tem uma certa idéia de onde se deve cortar, quem deve pagar a conta etc.
É um tema recorrente -uma conta a pagar. E a conta vem sempre depois das eleições. Os vencidos se preocupam em pagar a própria conta; os vencedores em distribuí-la da maneira que julgam mais justa entre todos os brasileiros.
Sem desmerecer as qualidades singulares do Plano Real, há muitos elementos comuns no processo político contemporâneo. A bolha de consumo vai se enchendo até o momento das eleições. Todos sabem o que não dura, que medidas restritivas virão. Mas os eleitores se preocupam primeiro em gratificar quem lhes propiciou esse aumento de bens materiais e serviços. A palavra estabilidade, ou qualquer outra, só tem eficácia eleitoral se for sentida, como tem sido, como a garantia de mais frango na mesa, mais iogurte, mais carros na garagem, mais compras no exterior.
O faz-de-conta só acaba depois do último voto apurado.
Mas não é um processo em que o povo é simplesmente enganado. A maioria foi informada de que depois das eleições viria o aperto. Como se o modelo do Carnaval fosse aplicado aos governos e a Quarta-Feira de Cinzas correspondesse ao dia do plano.
Deve haver muitas possibilidades de romper com essa lógica. Acho que ela é muito forte porque reproduz com muita fidelidade os comportamentos individuais. Em nossas vidas particulares, oscilamos entre bolhas de consumo e apertos sazonais. Talvez nasça daí a tolerância com um comportamento similar dos governos.
Os mais pobres sofrem muito. O único consolo são os políticos derrotados. Saem da campanha com as ilusões estilhaçadas, credores cercando sua casa. E na TV só lhes resta o espetáculo de ver o vencedor explicando que é preciso apertar o cinto. Nesse faz-de-conta, as crises são relâmpagos em céu azul que nos atingem sempre na primeira semana de novembro.
Na verdade, há um outro consolo que eu não mencionei: as próximas eleições, sobretudo antes de encerrada a contagem de votos.



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