São Paulo, Quinta-feira, 02 de Dezembro de 1999


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CONTARDO CALLIGARIS
Utilidade das ficções

No avião de São Paulo a Boston devorei dois livros: "Vento Sudoeste", de Luiz Alfredo Garcia-Roza (Companhia das Letras), e "Hotel Brasil", escrito por Frei Betto (Ática).
"Vento Sudoeste" é a terceira aventura do delegado Espinosa, da 12ª DP, em Copacabana. Já faz tempo que sou fã do delegado e torço para que Garcia-Roza siga contando suas histórias a um bom ritmo. Já Frei Betto eu não conhecia como narrador. E foi uma ótima surpresa. Em suma, passei uma tarde muito agradável. Desci do avião muito grato com os autores.
Ora, cada vez que volto do Brasil para Boston, onde estou morando, no dia seguinte há uma série de papos inevitáveis com amigos e conterrâneos. E uma pergunta de praxe: "E aí, como é que está o Brasil?"
Ninguém espera mesmo receber como resposta uma análise exaustiva da situação econômica, social e política. Tampouco ninguém antevê grandes novidades. Afinal, muitos lêem os jornais brasileiros, no papel ou on line. Outros assistem à Globo na TV paga. Em última instância, a imprensa brasileira de Boston tem órgãos semanais que recapitulam as notícias essenciais.
Também sabemos que o Brasil possui a extraordinária propriedade de estar sempre nas últimas, reanimado em UTIs de todos os tipos, e de dar prova de mastodôntica inércia. As grandes surpresas, em suma, não são frequentes.
Geralmente respondo com alguns fatos de crônica e alguns indicadores econômicos, tipo: prenderam o Hildebrando, a inflação parece que não pega etc. São sempre notícias que ficam em cima do muro, dizem ao mesmo tempo de uma melhoria e do horror habitual, pois é bom que Hildebrando esteja preso, mas é espantosa a idéia que um deputado federal etc.
É esse, aliás, o tipo de resposta que o emigrante quer ouvir. Pois na verdade a pergunta colocada a quem volta do Brasil não pede informações. Ela serve primeiro para matar a saudade de quem não viajou: me diz algo que traga um cheiro da terra. E também -se não sobretudo- para confirmar o motivo da emigração: confirme que eu tive razão de ir embora.
Ora, dessa vez, descido do avião com Frei Betto e Garcia-Roza embaixo do braço, cheguei à sessão de perguntas experimentando um otimismo que, por vago que fosse, era surpreendente. A sensação não tinha nada a ver com os indicadores econômicos, com os números da violência urbana ou as perspectivas políticas. Eu me sentia (um pouco) otimista por causa dos dois livros lidos no avião. Mas a sensação não dependia das histórias (que obviamente são turvas) contadas por Garcia-Roza e por Frei Betto.
Ficava difícil explicar meu otimismo aos amigos brasileiros de Boston e, de fato, eu mesmo custei a entender de onde provinha esse estado de espírito.
Acontece que os dois livros me deram vontade de caminhar de Botafogo até a Barra. As ruas, normalmente ojerizadas pela violência inútil que as assola, retomavam seu charme: cheiros de padaria, conversas na praça, barulho de chuva.
Quando a ficção é humilde, quando não pretende ao sublime e tece com os fios de nosso cotidiano (como é o caso nos dois livros lidos no trajeto SP-Boston), ela transforma singularmente a paisagem de nossa vida: ela valoriza o nosso espaço.
Graças ao trabalho sorrateiro da ficção, o território, os prédios, as calçadas, as caras do povo cruzadas na rua ou debruçadas sobre o balcão de um boteco, tudo isso -que compõe o cotidiano-, aos poucos, se torna cenário possível de uma vida.
Viver para nós modernos não é entrar nos moldes previstos pela tradição, mas inventar nossas histórias e, vivendo, narrá-las mesmo que seja somente a nós mesmos -para que tenham algum sentido. Portanto, acreditar no lugar onde moramos, querer fazer nossa vida em um lugar e crescer com ele significa escolhê-lo como cenário. Isso não é só uma função do conforto, das oportunidades, do clima ou da conjuntura econômica.
O murmúrio das ficções, contando outras histórias, cria panos de fundo sem os quais a peça de nossa vida ficaria sem graça. E de fato os projetos de vida parecem funcionar melhor nos lugares que já são cenários possíveis, privilegiando as comunidades que compartilham histórias pelas quais as ruas e esquinas têm dignidade literária. Esses lugares, propriamente, valem a pena de uma história, a começar por aquela que cada um tem para inventar.
Os brasileiros, já foi notado muitas vezes, não dispõem de grandes narrativas épicas comuns: tudo, independência nacional, fim da escravatura, república etc., veio de cima, foi presente ou quase. Mas por sorte, no Brasil moderno, não faltou ficção que dignificasse o cotidiano e convidasse cada um a inventar sua vida. Uma das funções cruciais das novelas, por exemplo, foi e segue sendo esta: manter, defender a capacidade do país ser cenário.
Essa dignidade literária da paisagem nacional é condição mínima da esperança de um futuro melhor, pois ela é crucial para que a gente esteja a fim de inventar vidas. Nessas ruas, na Copacabana de Espinosa ou na Lapa do Hotel Brasil.

E-mail: ccalligari@uol.com.br


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