|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Utilidade das ficções
No avião de São Paulo a Boston
devorei dois livros: "Vento Sudoeste", de Luiz Alfredo Garcia-Roza (Companhia das Letras), e
"Hotel Brasil", escrito por Frei
Betto (Ática).
"Vento Sudoeste" é a terceira
aventura do delegado Espinosa,
da 12ª DP, em Copacabana. Já faz
tempo que sou fã do delegado e
torço para que Garcia-Roza siga
contando suas histórias a um
bom ritmo. Já Frei Betto eu não
conhecia como narrador. E foi
uma ótima surpresa. Em suma,
passei uma tarde muito agradável. Desci do avião muito grato
com os autores.
Ora, cada vez que volto do Brasil para Boston, onde estou morando, no dia seguinte há uma série de papos inevitáveis com amigos e conterrâneos. E uma pergunta de praxe: "E aí, como é que
está o Brasil?"
Ninguém espera mesmo receber
como resposta uma análise exaustiva da situação econômica, social
e política. Tampouco ninguém
antevê grandes novidades. Afinal,
muitos lêem os jornais brasileiros,
no papel ou on line. Outros assistem à Globo na TV paga. Em última instância, a imprensa brasileira de Boston tem órgãos semanais
que recapitulam as notícias essenciais.
Também sabemos que o Brasil
possui a extraordinária propriedade de estar sempre nas últimas,
reanimado em UTIs de todos os
tipos, e de dar prova de mastodôntica inércia. As grandes surpresas, em suma, não são frequentes.
Geralmente respondo com alguns fatos de crônica e alguns indicadores econômicos, tipo: prenderam o Hildebrando, a inflação
parece que não pega etc. São sempre notícias que ficam em cima do
muro, dizem ao mesmo tempo de
uma melhoria e do horror habitual, pois é bom que Hildebrando
esteja preso, mas é espantosa a
idéia que um deputado federal
etc.
É esse, aliás, o tipo de resposta
que o emigrante quer ouvir. Pois
na verdade a pergunta colocada a
quem volta do Brasil não pede informações. Ela serve primeiro para matar a saudade de quem não
viajou: me diz algo que traga um
cheiro da terra. E também -se
não sobretudo- para confirmar
o motivo da emigração: confirme
que eu tive razão de ir embora.
Ora, dessa vez, descido do avião
com Frei Betto e Garcia-Roza embaixo do braço, cheguei à sessão
de perguntas experimentando um
otimismo que, por vago que fosse,
era surpreendente. A sensação
não tinha nada a ver com os indicadores econômicos, com os números da violência urbana ou as
perspectivas políticas. Eu me sentia (um pouco) otimista por causa
dos dois livros lidos no avião. Mas
a sensação não dependia das histórias (que obviamente são turvas) contadas por Garcia-Roza e
por Frei Betto.
Ficava difícil explicar meu otimismo aos amigos brasileiros de
Boston e, de fato, eu mesmo custei
a entender de onde provinha esse
estado de espírito.
Acontece que os dois livros me
deram vontade de caminhar de
Botafogo até a Barra. As ruas,
normalmente ojerizadas pela violência inútil que as assola, retomavam seu charme: cheiros de
padaria, conversas na praça, barulho de chuva.
Quando a ficção é humilde,
quando não pretende ao sublime
e tece com os fios de nosso cotidiano (como é o caso nos dois livros
lidos no trajeto SP-Boston), ela
transforma singularmente a paisagem de nossa vida: ela valoriza
o nosso espaço.
Graças ao trabalho sorrateiro
da ficção, o território, os prédios,
as calçadas, as caras do povo cruzadas na rua ou debruçadas sobre
o balcão de um boteco, tudo isso
-que compõe o cotidiano-, aos
poucos, se torna cenário possível
de uma vida.
Viver para nós modernos não é
entrar nos moldes previstos pela
tradição, mas inventar nossas histórias e, vivendo, narrá-las mesmo que seja somente a nós mesmos -para que tenham algum
sentido. Portanto, acreditar no lugar onde moramos, querer fazer
nossa vida em um lugar e crescer
com ele significa escolhê-lo como
cenário. Isso não é só uma função
do conforto, das oportunidades,
do clima ou da conjuntura econômica.
O murmúrio das ficções, contando outras histórias, cria panos
de fundo sem os quais a peça de
nossa vida ficaria sem graça. E de
fato os projetos de vida parecem
funcionar melhor nos lugares que
já são cenários possíveis, privilegiando as comunidades que compartilham histórias pelas quais as
ruas e esquinas têm dignidade literária. Esses lugares, propriamente, valem a pena de uma história, a começar por aquela que
cada um tem para inventar.
Os brasileiros, já foi notado
muitas vezes, não dispõem de
grandes narrativas épicas comuns: tudo, independência nacional, fim da escravatura, república etc., veio de cima, foi presente ou quase. Mas por sorte, no
Brasil moderno, não faltou ficção
que dignificasse o cotidiano e convidasse cada um a inventar sua
vida. Uma das funções cruciais
das novelas, por exemplo, foi e segue sendo esta: manter, defender
a capacidade do país ser cenário.
Essa dignidade literária da paisagem nacional é condição mínima da esperança de um futuro
melhor, pois ela é crucial para que
a gente esteja a fim de inventar vidas. Nessas ruas, na Copacabana
de Espinosa ou na Lapa do Hotel
Brasil.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Prêmio: Steve McQueen vence o Turner Próximo Texto: Música Erudita - Crítica: Os russos estão chegando Índice
|