São Paulo, Quinta-feira, 03 de Fevereiro de 2000


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MÚSICA
Maricenne Costa lança, pelo CPC, disco com primeiros momentos da música popular no Brasil
Cantora da bossa volta ao início do século

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

O projeto é a cara do selo/entidade Centro Popular de Cultura (CPC), da União Municipal dos Estudantes Secundaristas (Umes): um CD, "Como Tem Passado!!", que pretende trazer a estudantes e "novos" em geral os primeiros momentos da gravação de música popular no Brasil.
Entram no critério a primeira obra musical gravada no país ("Isto É Bom", 1902, de Xisto Bahia), o primeiro samba gravado, a primeira modinha, o primeiro maxixe, a primeira toada, e assim por diante (leia quadro na página). A pesquisa é do historiador e crítico musical nacionalista José Ramos Tinhorão.
Mas, embora o CPC Umes o esteja lançando, não é seu o projeto, nem tampouco de Tinhorão. É idéia da intérprete que se responsabiliza pelo CD, a paulista (de Cruzeiro) Maricenne Costa, 63.
Sem muitos registros na indústria musical local e pouco conhecida do público em geral, Maricenne vem acompanhando a música brasileira desde pelo menos o advento da bossa nova, à qual foi inicialmente vinculada.
À época, só gravou discos de 78 rpm e compactos -lançou apenas três álbuns em toda a carreira: "Maricenne Costa" (81), "Correntes Alternadas" (92) e "Como Tem Passado!!" (final de 99).
Começou antes da bossa, na verdade, nos programas de calouros em que cantava Noel Rosa e Herivelto Martins. Contratada da rádio Record ainda adolescente ("eu era boba, caipira, tímida, muito novinha"), conheceu a cantora Isaura Garcia (1919-93) e seu marido, o organista Walter Wanderley (1932-86), que gravaria com João Gilberto o histórico LP "João Gilberto" (61).
Estava entrando na turma. Obra dos folclores de época, é hoje mais lembrada pela lenda de que João Gilberto a perseguia pelos bares paulistanos do que pelo que cantava como crooner nos mesmos bares. Ela concede falar da lendinha, embora ressalte que jamais namorou o papa da bossa.
"Lembro que recebi pelo garçom um bilhete, que dizia: "Gostaria de conhecê-la, estou aqui fora". Fui conversar, expliquei que era do interior. "Ah, você não é do asfalto", ele disse. Ele me ouvia cantar, a frase que mais lembro era: "Que mensagem linda tem a sua voz". Podia até ser cantada, mas não sei. Ele gostava de ficar sentado no bar, em silêncio, tocando violão para a gente cantar e ele harmonizar", diz.
Em 65, perdeu-se, por inexperiência, de lançar um LP pela Verve norte-americana. "Viajei para os EUA para me apresentar, e lá assinei um contrato com a Verve. Voltei ao Brasil para o Natal, e havia uma cláusula que não vi, de que a primeira sessão de gravação deveria se realizar ainda naquele ano. Aí cancelaram, eu pirei", afirma, contando o que diz ser um de seus poucos arrependimentos.
Integrada à corrente principal de então, viu Geraldo Vandré ("mais recentemente, Vandré me chamou para gravar um disco com ele. Mas não dá certo...") e Théo de Barros começarem a compor "Menino das Laranjas" na cozinha de seu apartamento no centro de São Paulo.
Gravou uma das primeiras canções de Chico Buarque, "Marcha para um Dia de Sol" ("acho que Chico não gosta muito dessa música, eu entendo, aquela conversa de pobre de mão dada com o rico..."), e participou de vários dos festivais da canção. Então veio a modernização tropicalista, um fator a mais para desmobilizar o grupo bossa-novista.
"Quando entrou o tropicalismo, houve um choque muito grande, por causa das guitarras elétricas. Uns artistas foram estudar no exterior, outros dar aulas, outros para o jingle. Foi um susto, sentimos medo. Era como se perdêssemos o lugar para uma música mais comercial, assumida, para fora, com crítica social. Tem gente que não se conforma até hoje. Era um pouco sensacionalista em comparação com a bossa nova, mas acho que foi um movimento que trouxe mais valor à bossa, era a MPB chegando."
O período coincidiu com a dispersão artística da própria Maricenne. "Foi por isso, também, que fui fazer faculdade, fui fazer teatro." Trocou a música pelo teatro até 1977 (bem, nem tanto; no início dos 70, aproveitou o histórico cenário ainda não desmontado da peça "O Balcão", de Jean Genet, no teatro Ruth Escobar, para um show com o Som Imaginário).
No retorno à música, criou o show "Interiores", num roteiro temático sobre migrantes na capital, com músicas de Belchior, Tom Jobim e Milton Nascimento.
Uma reviravolta a esperava nos anos 80, quando foi ao templo da vanguarda Lira Paulistana e viu um show punk dos Inocentes. "Fiquei impressionada com a força daquilo. Até então eu ouvia jazz, pensei: "Isso eu tenho que cantar, é dramático". As letras da MPB estavam um pouco chochas, os roqueiros vieram falando de atualidade, de realidade social".
Pronto, virou roqueira. Fez show com repertório de Rita Lee, Cazuza, Laura Finocchiaro... Gravou Ritchie (uma inesperada parceria com Tom Zé) e duas dos Inocentes, em "Correntes Alternadas", que só foi lançado em 92.
Quando veio o disco, ela já estava partindo para outra. Foi naquele mesmo ano que apresentou pela primeira vez, com apoio do Museu da Imagem e do Som, o show de origem do atual CD, com a pesquisa de Tinhorão sobre as canções pioneiras.
Por que tanta mudança? "Pareço uma maluca, não é? Como posso explicar? Sou uma aprendiz, vou atrás do que parece não ter nada a ver comigo. Agora descobri a pesquisa, acho que é o que quero fazer daqui para a frente."
É que no processo da pesquisa se embrenhou nos arquivos do MIS, ouviu todas as gravações originais, "tiradas da gramofone para a boca do gravador pelo Tinhorão", chamou o grupo de choro de Izaías (que lança, simultaneamente, pelo selo CPC Umes, o CD "Quem Não Chora Não Ama") para o acompanhamento.
O que ela espera do novo CD? "Após 40 anos de carreira, tive altas fossas, mas estou inteira porque nunca criei expectativas. Não sou uma artista fabricada. Só preciso de um disco que me solidifique, talvez seja esse."
Algum medo atual? "Meu medo era que Tinhorão ouvisse o resultado e não gostasse. Mas o pessoal do CPC já me disse que ele gostou." Ela não teve coragem, ainda, de falar com o historiador pessoalmente.


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