São Paulo, terça, 3 de fevereiro de 1998

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DISCOS LANÇAMENTOS
Celibidache torna Haydn mais rarefeito

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Sergiu Celibidache e a Filarmônica de Munique estiveram no Brasil uma única vez, em 1992, tocando concertos em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Com a morte do maestro no ano retrasado, a lembrança desses concertos ficou mais preciosa ainda; e parece um emblema da filosofia musical de Celibidache, que se recusava a gravar discos e defendia o caráter único de cada apresentação.
O lançamento da "Celibidache Edition" pela EMI serve de consolo para os que nunca o ouviram ao vivo, mas não substitui a memória desse músico idiossincrático e genial, talvez o maior regente do nosso tempo.
Celibidache nasceu na Romênia, em 1912. Doutor em música e matemática, ainda bem jovem tornou-se um regente conhecido na Alemanha, assumindo a Filarmônica de Berlim depois da guerra. Já desde essa época, não aceitava a idéia de registrar em disco a coisa viva que a música sempre foi para esse estudioso do zen-budismo e da fenomenologia.
Em 1952, a filarmônica decidiu mudar de rumo, contratando o ex-oficial nazista Herbert von Karajan como regente principal e embarcando numa empreitada ambiciosa de gravações e concertos.
Celibidache jamais a perdoou. Sua carreira ficou à sombra da de Karajan por muitos anos, até o convite para assumir a Filarmônica de Munique, em 1979, em que realizaria em condições ideais seu projeto musical e pedagógico.
Esse CD com as duas últimas sinfonias "Londres", de Haydn, integra uma coleção que já inclui a "Terceira Sinfonia", de Schumann, um disco com obras de Ravel e Debussy e os "Quadros de uma Exposição", de Mussorgski.
As gravações vêm dos arquivos da orquestra e são registros de concertos entre 1991 e 1994, prensados sem nenhum trabalho de corte ou edição.
Apresentados pelo filho do regente como uma forma de combater a pirataria, os discos servem como fonte de recursos para duas fundações recém-criadas: uma para subsidiar alunos de música e a outra para ajudar organizações filantrópicas ao redor do mundo. Mas são como fotografias de um homem que já morreu; instrumentos precários, que só ajudam a gente a se lembrar de uma presença, pouco mais do que traços de luz numa película.
E, de fato, para quem não teve a sorte de ouvir Celibidache e sua orquestra em 1992, as gravações sozinhas talvez não justifiquem a quase adoração que os músicos em particular e as platéias em geral sentiam pelo regente.
Seu Haydn com certeza vai parecer muito lento. Mas é preciso entender o modo como Celibidache organizava o tempo musical para aceitar seus andamentos. "Nenhuma peça tem tempo fixo", dizia ele, "depende da sala". E o tempo adotado deve permitir que cada nota chegue, de fato, aos ouvidos, com tudo o que a cerca.
A impressão de uma performance de Celibidache era a de que cada nota, mesmo nas passagens mais densas, vinha embalada numa campana de cristal, cada detalhe transportado no ar como um segredo raro. Acusá-lo de lentidão seria ignorar o sentido dessa música, que não soa como nenhuma outra e não se deixa mesmo apanhar pelos discos, como o maestro bem sabia.
Nos anos 60, o pianista canadense Glenn Gould abandonou as salas de concerto, que ele considerava um ambiente anacrônico e voltou-se exclusivamente para os estúdios de gravação. Celibidache está no extremo oposto, recusando-se a congelar e reproduzir, por meios mecânicos, uma experiência viva.
Um e outro acabaram inventando os meios mais adequados para sua imaginação. Um e outro ouviam música de forma pessoal e intransferível; e suas diferenças ideológicas convergem, afinal, para a convicção de que a música, hoje, precisa resistir à sua instrumentalização comercial. São dois santos de religiões diferentes, mas que provavelmente se compreenderiam muito bem.
Tudo em Celibidache soa como Celibidache, o que é quase um paradoxo para um homem voltado como ele à "verdade de cada compositor". As duas sinfonias de Haydn, obras-primas de um gênero nunca inigualado, em que a música popular atinge as pretensões da arte mais elevada, soam nesse disco como uma outra música, mais rarefeita e livre, mesmo sem perder o humor.
Autodefinido como um gnóstico, discípulo de Sai Baba, Celibidache não acreditava na palavra -oral ou escrita- nem no pensamento lógico como meio de acesso à realidade. Sua música, sim, tinha esse papel, nada místico a despeito das aparências, de construir ou cultivar alguma coisa de humano entre os homens.
É uma ironia involuntária que o legado de Celibidache transcenda hoje qualquer CD e dependa das palavras para se fazer compreender. Talvez a coleção tenha de ser tratada dessa forma incomum: ouvir para esquecer o que se ouviu e imaginar o que não pode ser ouvido. É muito menos do que um concerto de Celibidache. Mas talvez não seja tão diferente assim.

Disco: Sinfonias Hob. I: 103 e 104
Compositor: Josef Haydn
Regente: Sergiu Celibidache Lançamento: EMI Quanto: R$ 18, em média



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