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DISCOS LANÇAMENTOS
Celibidache torna Haydn mais rarefeito
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
Sergiu Celibidache e a Filarmônica de Munique estiveram no
Brasil uma única vez, em 1992, tocando concertos em São Paulo,
Rio de Janeiro e Brasília. Com a
morte do maestro no ano retrasado, a lembrança desses concertos
ficou mais preciosa ainda; e parece
um emblema da filosofia musical
de Celibidache, que se recusava a
gravar discos e defendia o caráter
único de cada apresentação.
O lançamento da "Celibidache
Edition" pela EMI serve de consolo para os que nunca o ouviram ao
vivo, mas não substitui a memória
desse músico idiossincrático e genial, talvez o maior regente do
nosso tempo.
Celibidache nasceu na Romênia,
em 1912. Doutor em música e matemática, ainda bem jovem tornou-se um regente conhecido na
Alemanha, assumindo a Filarmônica de Berlim depois da guerra. Já
desde essa época, não aceitava a
idéia de registrar em disco a coisa
viva que a música sempre foi para
esse estudioso do zen-budismo e
da fenomenologia.
Em 1952, a filarmônica decidiu
mudar de rumo, contratando o
ex-oficial nazista Herbert von Karajan como regente principal e
embarcando numa empreitada
ambiciosa de gravações e concertos.
Celibidache jamais a perdoou.
Sua carreira ficou à sombra da de
Karajan por muitos anos, até o
convite para assumir a Filarmônica de Munique, em 1979, em que
realizaria em condições ideais seu
projeto musical e pedagógico.
Esse CD com as duas últimas
sinfonias "Londres", de Haydn,
integra uma coleção que já inclui a
"Terceira Sinfonia", de Schumann, um disco com obras de Ravel e Debussy e os "Quadros de
uma Exposição", de Mussorgski.
As gravações vêm dos arquivos
da orquestra e são registros de
concertos entre 1991 e 1994, prensados sem nenhum trabalho de
corte ou edição.
Apresentados pelo filho do regente como uma forma de combater a pirataria, os discos servem
como fonte de recursos para duas
fundações recém-criadas: uma para subsidiar alunos de música e a
outra para ajudar organizações filantrópicas ao redor do mundo.
Mas são como fotografias de um
homem que já morreu; instrumentos precários, que só ajudam a
gente a se lembrar de uma presença, pouco mais do que traços de
luz numa película.
E, de fato, para quem não teve a
sorte de ouvir Celibidache e sua
orquestra em 1992, as gravações
sozinhas talvez não justifiquem a
quase adoração que os músicos
em particular e as platéias em geral
sentiam pelo regente.
Seu Haydn com certeza vai parecer muito lento. Mas é preciso entender o modo como Celibidache
organizava o tempo musical para
aceitar seus andamentos. "Nenhuma peça tem tempo fixo", dizia ele, "depende da sala". E o
tempo adotado deve permitir que
cada nota chegue, de fato, aos ouvidos, com tudo o que a cerca.
A impressão de uma performance de Celibidache era a de que cada
nota, mesmo nas passagens mais
densas, vinha embalada numa
campana de cristal, cada detalhe
transportado no ar como um segredo raro. Acusá-lo de lentidão
seria ignorar o sentido dessa música, que não soa como nenhuma
outra e não se deixa mesmo apanhar pelos discos, como o maestro
bem sabia.
Nos anos 60, o pianista canadense Glenn Gould abandonou as salas de concerto, que ele considerava um ambiente anacrônico e voltou-se exclusivamente para os estúdios de gravação. Celibidache
está no extremo oposto, recusando-se a congelar e reproduzir, por
meios mecânicos, uma experiência viva.
Um e outro acabaram inventando os meios mais adequados para
sua imaginação. Um e outro ouviam música de forma pessoal e
intransferível; e suas diferenças
ideológicas convergem, afinal, para a convicção de que a música,
hoje, precisa resistir à sua instrumentalização comercial. São dois
santos de religiões diferentes, mas
que provavelmente se compreenderiam muito bem.
Tudo em Celibidache soa como
Celibidache, o que é quase um paradoxo para um homem voltado
como ele à "verdade de cada compositor". As duas sinfonias de
Haydn, obras-primas de um gênero nunca inigualado, em que a
música popular atinge as pretensões da arte mais elevada, soam
nesse disco como uma outra música, mais rarefeita e livre, mesmo
sem perder o humor.
Autodefinido como um gnóstico, discípulo de Sai Baba, Celibidache não acreditava na palavra
-oral ou escrita- nem no pensamento lógico como meio de acesso
à realidade. Sua música, sim, tinha
esse papel, nada místico a despeito
das aparências, de construir ou
cultivar alguma coisa de humano
entre os homens.
É uma ironia involuntária que o
legado de Celibidache transcenda
hoje qualquer CD e dependa das
palavras para se fazer compreender. Talvez a coleção tenha de ser
tratada dessa forma incomum: ouvir para esquecer o que se ouviu e
imaginar o que não pode ser ouvido. É muito menos do que um
concerto de Celibidache. Mas talvez não seja tão diferente assim.
Disco: Sinfonias Hob. I: 103 e 104
Compositor: Josef Haydn
Regente: Sergiu Celibidache
Lançamento: EMI
Quanto: R$ 18, em média
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