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MEMÓRIA
Citava-se o bardo por dá lá aquela palha
NINA DE GUIMARÃES HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Meu avô, Arthur da Costa
Guimarães, era o irmão
pragmático de Afonso. O engenheiro, professor catedrático de
estabilidade das construções, que
escrevia livros sobre pontes, empuxo de terras e muros de arrimo
e que ameaçava os filhos de porão, pão e água se ousassem um
único soneto.
De que tinha medo o avô Arthur? Com certeza da vida difícil
do irmão, do solitário de Mariana.
"Tu que vais plantar açucenas e lírios bem sabes que afinal só colherás martírios."
Não sei da religião de Alphonsus. Meu avô, meu pai e meus tios
não falavam em Deus, mas foi por
meio deles que ouvi as primeiras
sonoridades místicas do poeta. Os
círios, os lírios, a pobre lua nova
tão pequena, a catedral ebúrnea
dos seus sonhos toda branca de
luz, a mão cujas veias azuis parecem feitas da mesma essência astral dos óleos bentos. E cinamomos, muitos cinamomos.
As histórias que escutava quando pequena não eram da Branca
de Neve. Ou até que eram, por
causa das brancas mortalhas e do
brasão dos avós, "campo de neve
onde agoniza um coração".
A heroína, a princesa, figura
principal da saga familiar sempre
foi Constancinha, filha de Bernardo Guimarães, a prima e noiva
morta de Alphonsus. Minha mãe,
que conhecia Zenaide, a mulher
verdadeira, de carne e osso, torcia
o nariz para aquela noiva que não
se enterrava jamais. "Ela tossia,
pelos ninhos cantava a noite, toda
luar. S. Bom Jesus de Matozinhos
olhava-a como que a chorar..."
E o quarto dos noivos?, perguntávamos, sem ar. "Em frente ao
leito dos amores nossos, uma caveira a rir eternamente, nos braços de uma cruz talhada em ossos."
Confundíamos um pouco a noiva com Ismália enlouquecida,
posta na torre a sonhar. Sua alma
subiu ao céu, seu corpo desceu ao
mar, e era tudo mais ou menos a
mesma coisa.
Crescemos. Santo de casa não
faz milagre e citava-se o bardo
corriqueiramente, por dá lá aquela palha.
Se houvesse uma suspeita de
um perigo no ar, falência, doença,
marido traído, era de praxe declamar em voz soturna, "E o sino geme em lúgubres responsos: Pobre
Alphonsus! Pobre Alphonsus!".
Nas horas de depressão, desânimo, xícara quebrada, comida
queimada, "Ah, se chegasse em
breve o dia incerto!".
Diante de uma pedra no caminho, de uma topada no dedão, de
uma empregada maluca, "Satan,
va-t-en! Va-t-en, Satan!".
Hoje me intrigo como vicejou,
naqueles cafundós de Mariana,
um senhor Alphonsus com tanto
misticismo nas veias, tantas palavras esdrúxulas na cabeça, tanto
Verlaine no bestunto, tanto francês perfeito, tantas referências fora de seu mundo. Como diria seu
irmão Arthur. Muita novela nesta
cachimônia!!! Va-t-en, Satan! Satan, va-t-en!
Das virgens mortas passamos
para a deliciosa galinha cega de
João Alphonsus, para a escrava
Isaura, Rosaura, a enjeitada, o ermitão de Muquém.
Sabendo, cúmplices, que por
trás de todos os livros da estante,
escondido das crianças ficava "O
Elixir do Pajé", muito, muito mais
sintonizado ao gosto dos homens
da família.
Com ancestrais tão letrados,
tios, tias, sobrinhos e sobrinhas se
correspondiam furiosamente à
falta dos sonetos. Imagino que, se
colecionadas, essas cartas fariam
a obra mais divertida e bem escrita da família Guimarães. Dos Guimarães do copo, como se autodenominavam. Sinceramente, não
imagino o porquê.
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