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São Paulo, segunda-feira, 03 de março de 2003

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ANÁLISE

Dan Rather encarna o herói-jornalista

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A opinião pública americana não é fácil de atingir ou conquistar, mas vai se tornando alvo estratégico nas articulações para a construção de uma ordem global minimamente igualitária.
Diante do ímpeto belicoso do império americano, furar o bloqueio de informação que o nacionalismo oficial impõe se tornou objetivo crucial de países discordantes, particularmente na tática de defesa do Iraque.
A evidente superioridade bélica anglo-americana deixa poucas alternativas. Saddam Hussein, sitiado em Bagdá, berço das primeiras aglomerações urbanas na história da humanidade, desencadeou uma ofensiva no plano da comunicação dirigida diretamente aos cidadãos norte-americanos através de Dan Rather, principal âncora da CBS, rede de TV aberta norte-americana.
A longa entrevista concedida pelo ditador iraquiano foi ao ar em edição especial da tradicional revista dominical "60 Minutes", uma espécie de "Fantástico" de lá, na última quarta-feira.
Encarnando o herói-jornalista, profissional "neutro", uma espécie de Clark Kent, esteio independente que garante a transparência da ordem pública, Dan Rather talvez tenha contribuído para reativar um poder que no pós-11 de setembro parecia adormecido.
A ação de Rather lembrou Walter Cronkite, o jornalista que no final da década de 60 foi até o Vietnã, registrou imagens e depoimentos que revelaram ao público de seu país atrocidades cometidas por um exército que, como o atual, supostamente agia para "libertar" o povo vietnamita. Na época, a cobertura contribuiu para fortalecer o movimento pacifista.
A entrevista, parcialmente disponível no site da emissora (www.cbsnews.com), mostra um Dan Rather cauteloso, ciente de estar pisando em ovos ao servir de canal a um líder estrangeiro considerado inimigo de seu país.
Sensível à invasão de seu "espaço aéreo", a Casa Branca, em um pedido pouco usual para um país que se quer democrático e sinalizando o intervencionismo crescente do estado no espaço público, queria a participação de um oficial no programa. A CBS negou.
Larry King, o entrevistador da CNN, ultimamente dedicado a assuntos comezinhos, convidou seu colega a debater a guerra iminente. Sua conversa com Dan Rather revelou a disposição de ambos em reconhecer que o clima internacional não é favorável aos EUA.
Rather, cauteloso para não desrespeitar a autoridade de seu presidente, enfatizou o recado iraquiano. Disse que a guerra já começou e que no que se refere à comunicação, os Estados Unidos estão perdendo. Sugeriu que o esforço bélico envolverá perdas significativas. Ressaltou que Saddam nega ligação com o terrorismo.
A disposição do Iraque revelou atender a determinação da ONU. Desmontando mísseis é coerente com a tática, recém-adotada, da guerrilha simbólica e promete agregar apoio contra a guerra.
Há uma guerra de imagens contra exércitos fortemente armados. Resta saber qual será o poder de fogo da opinião pública, instância fluida e instável, sobre a linha dura que comanda uma escalada armamentista sem precedentes.


Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP


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