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"AS HORAS"
Micheal Cunningham se apropria de "Mrs. Dalloway"
FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
É preciso ter na linguagem
um fio muito forte para deter
o leitor usando de quase nenhuma trama. Virginia Woolf (1882-1941) o tinha -e entre os muitos
que enlaçou está o norte-americano Michael Cunningham (1952).
Movido por sua adoração à autora inglesa, Cunningham publicou em 1998 o romance "As Horas", em que retoma o delgado
enredo de "Mrs. Dalloway", escrito por Woolf em 1925, e o fragmenta ao longo de um dia na vida
de três personagens: Clarissa
Vaughan, uma editora na Nova
York dos anos 90; Laura Brown,
dona-de-casa na Los Angeles do
pós-guerra; e a própria Virginia,
em 1923, quando começava a escrever "Mrs. Dalloway".
O leitor já deve saber que o livro
deu origem ao recém-estreado filme de Stephen Daldry. Por conta
disso, a Companhia das Letras
põe no mercado uma reimpressão de "As Horas", que saiu aqui
em 1999, após ter rendido a seu
autor os renomados Pulitzer e o
Pen/Faulkner. O que o leitor não
sabe é quão mais sutil é o livro de
Cunningham na urdidura de suas
histórias paralelas.
O autor se esmera em reproduzir a força da linguagem de Woolf;
mas é na apropriação que faz do
tema ou temas de "Mrs. Dalloway" que reside a complexidade
de "As Horas".
A dúvida atormentadora sobre
o acerto de decisões do passado
sempre foi um mote sedutor para
a literatura. É, de certa forma, o
primeiro aspecto do livro de
Woolf -que originalmente deveria se chamar "As Horas"- e motivo também do livro de Cunningham.
Ao longo do dia em que dará
uma festa, Clarissa Dalloway rememora sua juventude e suas opções. Seus "fantasmas" ganham
carne na chegada inesperada de
Peter Walsh, um antigo pretendente, que a flagra em plenos preparativos. Clarissa responde às
dúvidas que a assolam com fatalismo: o tempo passou; foi assim.
A busca por se conformar com
o próprio estado -mesmo sabendo que a vida esperada jaz
num tempo remoto- é o que
move também as personagens de
Cunningham ao longo de seu dia.
Laura Brown se casou com um
herói da Segunda Guerra, Dan.
Fazer o bolo perfeito no aniversário do marido é sua tentativa de
sentir-se confortável nas próprias
vestes. Clarissa Vaughan, por sua
vez, prepara uma celebração para
o poeta Richard, no dia em que ele
deve receber um importante prêmio literário. Ele foi seu amor da
juventude, convertido em grande
amigo. Soropositivo, encontra-se
em estado terminal.
Finalmente, também Virginia
surge como alguém que se esforça
ao máximo para se acomodar à
sua escolha. Não escrever era, para Virginia Woolf, "inconcebível". Ao mesmo tempo, nunca na
vida sentiu-se segura da única opção que vislumbrava para si.
O mero esforço de transpor o
dia de Clarissa Dalloway para um
cenário atual já não seria pequeno. O que Cunningham faz é ainda mais difícil: em lugar de cunhar personagens análogas às do
romance de Woolf, ele pulveriza
situações, atitudes e até nomes ao
longo das três histórias que tece
em "As Horas". Ao mesmo tempo, Cunningham cria também
ecos entre suas três mulheres, em
detalhes que se repetem, como se
fossem estribilhos.
Com tal ardil, o autor consegue
alcançar a questão que está no
fundo do romance de Virginia
Woolf e, talvez, de toda a sua obra.
Ao condensar a vida de uma mulher em apenas um dia, Virginia
Woolf exercitou abolir as horas
do relógio em nome de uma compreensão da vida que extrapola
ontem, hoje e amanhã, 1923, 1940,
o fim do século 20.
Em "As Horas", o arco dos anos
entre Virginia, Laura e Clarissa se
desfaz, dando lugar a um só tempo contínuo, um dia dilatado, de
gestação de possibilidades, um
dia de dúvidas e inquietações, de
considerações sobre vida e morte.
É na arte que o homem tenta
vencer o rumo inevitável dos ponteiros. Cunningham sabe disso e,
em seu livro, todas as suas personagens encetam esse escape -diferentemente de Woolf, que não
dá a "Mrs. Dalloway" e seus circunstantes nem sequer essa fagulha de redenção.
Nessa diferença se encerra, por
fim, a última homenagem deste livro curto, porém denso: um brinde a Virginia, que lutou, com sua
pena, contra a loucura e o medo e,
ainda assim, exausta, sucumbiu
nas águas do Ouse.
As Horas
The Hours
Autor: Michael Cunningham
Tradução: Beth Vieira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 27,50 (182 págs.)
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