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São Paulo, segunda-feira, 03 de março de 2003

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NELSON ASCHER

Anjos e monstros

Durante muito tempo, deitei-me cedo. Não por escolha: foi antes da adolescência, quando 9h da noite era meu deadline. Com que é que eu podia, nessas circunstâncias, ocupar a mente antes de pegar no sono? Com as dimensões da megafauna, é claro.
As cortinas do quarto, cuja estampa imitava um velho mapa náutico salpicado de cetáceos hiperbólicos, remetiam-me ao episódio no qual, nadando até uma ilhota deserta após naufragar, Simbad descobre que, sob a fogueira que acendera, a terra (nada firme) reage de modo bastante irritado. Como os 30 e tantos metros dos manuais de zoologia são demasiado modestos até para a mais claustrofóbica das ilhotas, parecia razoável pressupor baleias de meio quilômetro (além de cobras capazes de envolver um quarteirão e répteis que abocanham um elefante inteiro).
Se, para obter seu monstro, há quem componha, digamos, com uma cabeça humana colada a um pescoço de cavalo, um conjunto que, com membros de origens diversas, cobertos de penas coloridas, começa num extremo como peixe escuro e termina, no oposto, como uma moça, outros concebem a monstruosidade manipulando fitas métricas, balanças e sufixos: um tigrinho de colo pode ser um bicho de estimação, mas um gatão de 200 kg é uma fera aterrorizante. Uma barata normal (OK, nenhuma barata é normal) causa nojo, mas, fosse dez vezes maior, não caberia num pesadelo. (E, numa nota mais lírica, García Lorca chamou a lagartixa de "gota de crocodilo").
Na realidade empírica, as dimensões mínima e máxima de todo e qualquer organismo vivo podem ser cientificamente deduzidas. Assim, nada de insetos gigantes, pois é dentro de certos limites que seu exoesqueleto permite as trocas gasosas necessárias às funções vitais. E, quanto às baleias, mamíferos grandes demais para outro habitat que não o mar, mesmo ali elas só se salvam se suas necessidades nutricionais não ultrapassarem a capacidade do meio.
Tais regras, contudo, não sujeitam a imaginação que alimenta as artes, que, por seu turno, obedecem a regras diferentes. Por exemplo: sempre foi mais fácil criar monstros compostos na pintura do que no cinema, onde foram os hiperbólicos que tiveram mais sucesso. Basta pensar no susto da primeira platéia diante dos movimentos de uma aranhazinha de verdade que a invenção dos irmãos Lumière transformara em criatura pavorosa. O que se seguiu, de "King Kong", passando por "Tubarão" e chegando ao "Parque dos Dinossauros", se não um passo tão pequeno para os especialistas em efeitos especiais, foi sem dúvida um grande salto para as bilheterias.
O que há de mais fascinante na "monstrologia", porém, é um capítulo que está sendo escrito não com a caneta ou com a câmera cinematográfica, mas a golpes cuidadosos de pá. Deve-se à paleontologia o conhecimento do maior desastre ecológico provocado pelo homem: a extinção da megafauna do Novo Mundo.
Quando caçadores siberianos de mamutes e mastodontes variados atravessaram, 12 mil ou 15 mil anos atrás, a Behríngia (as terras atualmente debaixo do mar no estreito de Behring), antes de alcançarem, um milênio mais tarde, a Patagônia, aproveitaram para comer tudo que encontraram de nutritivo pela frente. Dizimando uma megafauna quase inimaginável (tatus imensos, bichos-preguiça do tamanho de um fusca), legaram a seus herdeiros tanto a necessidade de desenvolver o cultivo do milho e da batata como, na falta de proteína animal mais acessível, o hábito do canibalismo.
Tragédias parecidas ocorreram há pouquíssimos séculos em habitats, principalmente ilhas, cujo isolamento assegurara, antes da ocupação humana, a sobrevivência de estranhezas zoológicas como a moa (um pássaro perto do qual o avestruz pareceria um periquito), a ave-elefante (de mais de 400 kg) e os lêmures gigantes, todos eles extintos na Nova Zelândia e em Madagáscar pelos colonizadores polinésios.
Enquanto nos dedicávamos preponderantemente à caça, eram somente as outras espécies que pagavam o preço, mas, depois de domesticarmos (ou seja, modificarmos geneticamente) alguns animais, começamos também a pagar caro por isso. Originalmente, as moléstias infecciosas que, da varíola à gripe, constituíram o principal flagelo da humanidade eram quase todas doenças mais ou menos inócuas de bovinos, suínos, ovinos etc. Mas, ao mudarem de hospedeiro, não tiveram ainda tempo para se adaptarem a nós, tornando-se menos letais. Convém, por outro lado, não esquecer quanto de nossa (relativa e limitada) autocompreensão decorre do convívio, seja como caçadores, seja como pastores, com as outras espécies.
Um cientista afirmou, certa feita, que os seres humanos jamais viriam a ser anjos por dois motivos: primeiro, por causa da imperfeição inata de seu caráter e, segundo, porque seu esqueleto não comportaria, ao mesmo tempo, braços e asas. Apesar dessa constatação, nossa espécie raramente deixa de traçar uma linha intransponível entre si e o restante do mundo natural: somos anjos, embora caídos, e não animais, embora, bom, sem nenhum embora. No entanto o fascínio pelos monstros hipotéticos é uma forma ancestral de especulação que se fundamenta nesse prolongado convívio e que, ao contrapor constantes (tal ou qual bicho) e variáveis (seu tamanho), além de trabalhar com elementos observáveis, aliás mensuráveis, acaba sobretudo entremostrando o que o Homo sapiens sapiens tem de mais angelical e monstruoso: sua capacidade de formular hipóteses.


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