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NELSON ASCHER
Anjos e monstros
Durante muito tempo, deitei-me cedo. Não por escolha: foi antes da adolescência,
quando 9h da noite era meu deadline. Com que é que eu podia,
nessas circunstâncias, ocupar a
mente antes de pegar no sono?
Com as dimensões da megafauna, é claro.
As cortinas do quarto, cuja estampa imitava um velho mapa
náutico salpicado de cetáceos hiperbólicos, remetiam-me ao episódio no qual, nadando até uma
ilhota deserta após naufragar,
Simbad descobre que, sob a fogueira que acendera, a terra (nada firme) reage de modo bastante
irritado. Como os 30 e tantos metros dos manuais de zoologia são
demasiado modestos até para a
mais claustrofóbica das ilhotas,
parecia razoável pressupor baleias de meio quilômetro (além de
cobras capazes de envolver um
quarteirão e répteis que abocanham um elefante inteiro).
Se, para obter seu monstro, há
quem componha, digamos, com
uma cabeça humana colada a
um pescoço de cavalo, um conjunto que, com membros de origens diversas, cobertos de penas
coloridas, começa num extremo
como peixe escuro e termina, no
oposto, como uma moça, outros
concebem a monstruosidade manipulando fitas métricas, balanças e sufixos: um tigrinho de colo
pode ser um bicho de estimação,
mas um gatão de 200 kg é uma fera aterrorizante. Uma barata
normal (OK, nenhuma barata é
normal) causa nojo, mas, fosse
dez vezes maior, não caberia num
pesadelo. (E, numa nota mais lírica, García Lorca chamou a lagartixa de "gota de crocodilo").
Na realidade empírica, as dimensões mínima e máxima de todo e qualquer organismo vivo podem ser cientificamente deduzidas. Assim, nada de insetos gigantes, pois é dentro de certos limites que seu exoesqueleto permite as trocas gasosas necessárias
às funções vitais. E, quanto às baleias, mamíferos grandes demais
para outro habitat que não o
mar, mesmo ali elas só se salvam
se suas necessidades nutricionais
não ultrapassarem a capacidade
do meio.
Tais regras, contudo, não sujeitam a imaginação que alimenta
as artes, que, por seu turno, obedecem a regras diferentes. Por
exemplo: sempre foi mais fácil
criar monstros compostos na pintura do que no cinema, onde foram os hiperbólicos que tiveram
mais sucesso. Basta pensar no
susto da primeira platéia diante
dos movimentos de uma aranhazinha de verdade que a invenção
dos irmãos Lumière transformara em criatura pavorosa. O que se
seguiu, de "King Kong", passando
por "Tubarão" e chegando ao
"Parque dos Dinossauros", se não
um passo tão pequeno para os especialistas em efeitos especiais, foi
sem dúvida um grande salto para
as bilheterias.
O que há de mais fascinante na
"monstrologia", porém, é um capítulo que está sendo escrito não
com a caneta ou com a câmera cinematográfica, mas a golpes cuidadosos de pá. Deve-se à paleontologia o conhecimento do maior
desastre ecológico provocado pelo
homem: a extinção da megafauna do Novo Mundo.
Quando caçadores siberianos
de mamutes e mastodontes variados atravessaram, 12 mil ou 15
mil anos atrás, a Behríngia (as
terras atualmente debaixo do
mar no estreito de Behring), antes
de alcançarem, um milênio mais
tarde, a Patagônia, aproveitaram
para comer tudo que encontraram de nutritivo pela frente. Dizimando uma megafauna quase
inimaginável (tatus imensos, bichos-preguiça do tamanho de um
fusca), legaram a seus herdeiros
tanto a necessidade de desenvolver o cultivo do milho e da batata
como, na falta de proteína animal mais acessível, o hábito do
canibalismo.
Tragédias parecidas ocorreram
há pouquíssimos séculos em habitats, principalmente ilhas, cujo
isolamento assegurara, antes da
ocupação humana, a sobrevivência de estranhezas zoológicas como a moa (um pássaro perto do
qual o avestruz pareceria um periquito), a ave-elefante (de mais
de 400 kg) e os lêmures gigantes,
todos eles extintos na Nova Zelândia e em Madagáscar pelos colonizadores polinésios.
Enquanto nos dedicávamos
preponderantemente à caça,
eram somente as outras espécies
que pagavam o preço, mas, depois
de domesticarmos (ou seja, modificarmos geneticamente) alguns
animais, começamos também a
pagar caro por isso. Originalmente, as moléstias infecciosas que, da
varíola à gripe, constituíram o
principal flagelo da humanidade
eram quase todas doenças mais
ou menos inócuas de bovinos, suínos, ovinos etc. Mas, ao mudarem
de hospedeiro, não tiveram ainda
tempo para se adaptarem a nós,
tornando-se menos letais. Convém, por outro lado, não esquecer
quanto de nossa (relativa e limitada) autocompreensão decorre
do convívio, seja como caçadores,
seja como pastores, com as outras
espécies.
Um cientista afirmou, certa feita, que os seres humanos jamais
viriam a ser anjos por dois motivos: primeiro, por causa da imperfeição inata de seu caráter e,
segundo, porque seu esqueleto
não comportaria, ao mesmo tempo, braços e asas. Apesar dessa
constatação, nossa espécie raramente deixa de traçar uma linha
intransponível entre si e o restante do mundo natural: somos anjos, embora caídos, e não animais, embora, bom, sem nenhum
embora. No entanto o fascínio pelos monstros hipotéticos é uma
forma ancestral de especulação
que se fundamenta nesse prolongado convívio e que, ao contrapor
constantes (tal ou qual bicho) e
variáveis (seu tamanho), além de
trabalhar com elementos observáveis, aliás mensuráveis, acaba
sobretudo entremostrando o que
o Homo sapiens sapiens tem de
mais angelical e monstruoso: sua
capacidade de formular hipóteses.
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