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CONTARDO CALLIGARIS
O futuro encolheu
O que nos reserva o futuro?
Será que a Argentina conseguirá se recuperar? Greenspan vai
baixar as taxas de juros em um
quarto ou em meio ponto? ACM,
Jader Barbalho e José Roberto Arruda serão cassados? E quanto
vai crescer o Brasil em 2001? Como será a balança comercial no
fim do ano? E o dólar?
Será que nossos filhos entrarão
na faculdade? Arrumarão um
bom emprego? Encontrarão amigos e companheiros legais? E nós,
com quem e onde passaremos as
férias de julho?
Fecho os olhos e tento me lembrar. Posso estar enganado, mas
me parece que o futuro está ficando mais curto e, por consequência, mais prosaico.
Há apenas duas ou três décadas, o futuro nos ameaçava de extinção ou então enchia nossos
peitos de entusiasmos reformadores. Ele era extenso, prolongado:
nós nos preocupávamos com catástrofes ou transformações ambiciosas, radicais. Algo mudou.
Justamente, George Steiner acaba de publicar "Grammars of
Creation" (Gramáticas da Criação), livro no qual mostra que, ao
longo do século 20, a sensibilidade moderna tornou-se vespertina,
crepuscular. Vivemos como se fosse um fim de tarde: antevemos a
chegada próxima da noite e pensamos sobretudo no futuro imediato, como se faltasse tempo.
Com isso, fica complicado criar
ou inventar -na arte como na
vida-, pois é difícil acreditar em
começos radicais e ter a coragem
transformadora quando o pôr-do-sol alonga as sombras. Em suma, o futuro que orienta nossas
vidas encolheu.
Há, para esse fenômeno, uma
explicação feita: o fim dos grandes sonhos progressistas. Sonhávamos com o sol do socialismo,
deu chuva. Nós nos decepcionamos e agora esperamos apenas
miudagens: um aumento de salário, uma velhice legal.
Steiner propõe outra explicação. O futuro -o próprio tempo
gramatical- teria chegado tarde
à fala humana, inventado como
consolação diante da intolerável
perspectiva da morte. Somos
mortais, mas ajuda pensar que
sobreviveremos, quer seja num
além divino, quer seja na permanência de nossos projetos. Ora,
Steiner acha que os horrores do
século 20, além de questionarem
a racionalidade de nossas esperanças, nos familiarizaram demais com a morte.
À força de extermínios, os humanos teriam aprendido a morrer ou, no mínimo, a conviver
com a mortalidade. Em suma, se
a morte nos assusta menos por ser
uma presença familiar, torna-se
supérfluo o futuro -que fora inventado para compensar o horror
da morte.
Seja qual for a explicação, no
século que acaba, nossa experiência do futuro mudou. De que jeito?
Acordando de manhã, você volta para o presente e para futuros
diferentes. O presente é o reencontro com o parceiro ou a parceira
depois da solidão onírica da noite. Ou então o frescor do linho do
travesseiro no rosto. Menos agradável, ele pode ser um gosto de
ressaca e a volta de dores do corpo
esquecidas no sono. De qualquer
forma, são momentos breves,
quase roubados.
Nós, modernos, acordando, voltamos sobretudo para o futuro.
Pois nos definimos pela capacidade de mudança -não pelo que
somos, mas pelo que poderíamos
vir a ser: projetos e potencialidades. O tempo de nossa vida é o futuro. Em nossos despertares cotidianos, portanto, podemos ter
uma experiência fugaz e minoritária do presente, mas é a voz do
futuro que nos acorda e nos força
a sair da cama.
A questão é: qual futuro? Ele pode ser de longo prazo: desde o
apelo do dever de produzir um
mundo mais justo até o medo das
águas que subirão por causa do
efeito estufa. Ou então ele pode
ser imediato: as tarefas do dia que
começa, as necessidades do fim do
mês, a perspectiva de um encontro poucas horas mais tarde.
Do século 17 até o começo do século 20, o tempo dominante na
experiência de nossa cultura parece ter sido um futuro grandioso
-projetos coletivos a longo prazo. Hoje prevalece o futuro dos
afazeres imediatos. Nada de utopia, somente a agenda do dia.
Trata-se de uma nova experiência do tempo: uma maneira original de ser e de criar. Como Steiner
se apressa a declarar, não há por
que sermos nostálgicos dos futuros que já foram. Afinal, aqueles
futuros tornaram-se frequentemente cúmplices da barbárie do
século. Por que será, então, que
acho o futuro encolhido de hoje
um pouco inquietante?
É que o futuro não foi inventado, como sugere Steiner, só para
espantar a morte. O futuro nos
serve também para impor disciplina ao presente. Ele é nosso árbitro moral. Esperamos dele que
avalie nossos atos.
Por exemplo, somos justos (ou
tentamos ser) porque seremos recompensados ou punidos no futuro (pelo juízo divino ou pelo julgamento da história). Outro
exemplo, mais prosaico: paramos
de fumar, fazemos exercício e
adotamos regimes porque seremos julgados por nossa saúde futura.
Em suma, a qualidade de nossos atos de hoje depende do futuro
com o qual sonhamos. Nossa conduta tenta agradar ao tribunal
que nos espera, seja ele o vale de
Josafá ou nosso próximo exame
de colesterol. Tanto faz. Mas receio que futuros muito encolhidos
comandem vidas francamente
mesquinhas.
E-mail : ccalligari@uol.com.br<BR>
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