|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS/LANÇAMENTOS
"MORRAVAGIN"
Obra foi escrita entre 1917 e 1925, auge da vanguarda européia
Todos os "ismos" modernos se cruzam no texto de Cendrars
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Escrito entre os anos de 1917
e 1925 -no auge, portanto,
do vanguardismo europeu-,
"Morravagin" parece girar em
torno de vários eixos ao mesmo
tempo. Episódios típicos de faroeste se alternam com visões delirantes no estilo do "Bateau Ivre"
de Rimbaud; teorias da perversão
sexual com sabor surrealista dão
lugar a narrativas de complôs revolucionários numa Rússia que
lembra Dostoiévski. Hangares de
aviação em Paris, índios no Orinoco, sanatórios de luxo na Suíça
-a narrativa faz o leitor deslocar-se rapidamente da estética futurista de Marinetti para o mundo
de Júlio Verne, e deste para o de
Thomas Mann.
"Morravagin" não é, contudo,
tão caótico como parece. Uma
"sanidade" básica, um grande espírito aventureiro e um gosto insaciável pela vida fazem com que
seu autor, Blaise Cendrars (1887-1961), se situe, meio despreocupadamente, na esquina de diversas
escolas estéticas, países, influências e gêneros literários incompatíveis.
Sobressai, do livro, o bom humor corajoso com que Cendrars
enfrenta e condena a loucura da
Primeira Guerra. Alistando-se como voluntário em 1914, Cendrars
perdeu um braço na batalha da
Champagne, no ano seguinte.
Morravagin, protagonista do livro, é um "idiota", um demente,
um assassino serial, cujas atividades clandestinas e metódicas serviriam como prenúncio -quase
amador, sublinhe-se- dos grandes massacres organizados pelas
potências européias.
As vilanias e perversidades de
Morravagin, ao mesmo tempo
cômicas e chocantes, se sucedem
num ritmo trepidante de cinema
mudo, de folhetim popular. A estética do cinema está menos na
narrativa, contudo, do que em
certas imagens, em certas percepções, que Cendrars intercala com
naturalidade no texto.
Um dos primeiros capítulos do
livro descreve o hospital psiquiátrico onde Morravagin está preso.
Ladrilhos brancos, aparelhos médicos, tubos de ensaio, prateleiras
de cristal "surgiam como que numa tela, com a mesma grandeza
selvagem e terrível que os objetos
adquirem no cinema, grandeza de
intensidade, que é também a escala da arte negra, das máscaras indígenas, dos fetiches primitivos e
exprime a atividade latente, o ovo,
a formidável soma de energia permanente contida em todo objeto
inanimado".
A poesia contida na palpitação
muda e terrível da matéria, tema
caro aos futuristas, logo em seguida dá lugar a outra ordem de valorização estética. Morravagin escapa do asilo, com a ajuda do narrador. Explica-lhe a origem de sua
doença mental. Uma infância solitária e hiperexcitada num castelo húngaro (pensamos nas delicadezas de Rilke) acentuara em
Morravagin os traços da degeneração, da loucura congênita.
"Apaixonei-me exclusivamente
por objetos inestéticos, mal-e-mal
moldados, muitas vezes em matéria bruta, matéria-prima", conta
Morravagin. "Uma lata de biscoitos, um ovo de avestruz, uma máquina de costura, um pedaço de
quartzo, um lingote de chumbo,
um cano de aquecedor. Passava
os dias a manipulá-los, apalpá-los, cheirá-los." Pensamos em
Lautréamont; e a matéria futurista se torna objeto surrealista.
Morravagin passará dos instantes de estesia sexualizada ao culto
da ação, do terror, da aventura, da
guerra. Numa página impressionante, ele foge da Rússia num vagão blindado e se depara com
uma cena de aborto e suicídio. Em
poucos parágrafos, passa-se do
romance de espionagem para o
poema expressionista. Todos os
"ismos" modernos se sucedem e
se cruzam no texto de Cendrars; e
talvez o livro inteiro possa ser lido
como uma espécie de fenomenologia da vanguarda européia, que
o autor sopesa sem alegria, mas
também sem desencanto.
Talvez esteja nessa sua "mestiçagem" espiritual o segredo da
afinidade entre Cendrars e os brasileiros. "Morravagin" foi escrito,
em parte, durante uma das viagens que Cendrars fez ao Brasil.
O posfácio do autor, historiando a tumultuada redação do romance, é um exemplo de modéstia literária e de simpatia humana.
Um roteiro de cinema supostamente escrito pelo próprio Morravagin, "O Fim do Mundo Filmado pelo Anjo Notre-Dame"
completa o livro, que também
conta com excelentes notas da
tradutora Dorothée de Bruchard
e do coordenador da edição, Carlos Augusto Calil.
Morravagin
Autor: Blaise Cendrars
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 40 (336 págs.)
Texto Anterior: Crítica: Com "Flush", Virginia Woolf presta sua homenagem ao romantismo Próximo Texto: "O ajudante": Inocência fora do lugar é chave da literatura de Walser Índice
|