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São Paulo, sábado, 03 de maio de 2003

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"MORRAVAGIN"

Obra foi escrita entre 1917 e 1925, auge da vanguarda européia

Todos os "ismos" modernos se cruzam no texto de Cendrars

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Escrito entre os anos de 1917 e 1925 -no auge, portanto, do vanguardismo europeu-, "Morravagin" parece girar em torno de vários eixos ao mesmo tempo. Episódios típicos de faroeste se alternam com visões delirantes no estilo do "Bateau Ivre" de Rimbaud; teorias da perversão sexual com sabor surrealista dão lugar a narrativas de complôs revolucionários numa Rússia que lembra Dostoiévski. Hangares de aviação em Paris, índios no Orinoco, sanatórios de luxo na Suíça -a narrativa faz o leitor deslocar-se rapidamente da estética futurista de Marinetti para o mundo de Júlio Verne, e deste para o de Thomas Mann.
"Morravagin" não é, contudo, tão caótico como parece. Uma "sanidade" básica, um grande espírito aventureiro e um gosto insaciável pela vida fazem com que seu autor, Blaise Cendrars (1887-1961), se situe, meio despreocupadamente, na esquina de diversas escolas estéticas, países, influências e gêneros literários incompatíveis.
Sobressai, do livro, o bom humor corajoso com que Cendrars enfrenta e condena a loucura da Primeira Guerra. Alistando-se como voluntário em 1914, Cendrars perdeu um braço na batalha da Champagne, no ano seguinte. Morravagin, protagonista do livro, é um "idiota", um demente, um assassino serial, cujas atividades clandestinas e metódicas serviriam como prenúncio -quase amador, sublinhe-se- dos grandes massacres organizados pelas potências européias.
As vilanias e perversidades de Morravagin, ao mesmo tempo cômicas e chocantes, se sucedem num ritmo trepidante de cinema mudo, de folhetim popular. A estética do cinema está menos na narrativa, contudo, do que em certas imagens, em certas percepções, que Cendrars intercala com naturalidade no texto.
Um dos primeiros capítulos do livro descreve o hospital psiquiátrico onde Morravagin está preso. Ladrilhos brancos, aparelhos médicos, tubos de ensaio, prateleiras de cristal "surgiam como que numa tela, com a mesma grandeza selvagem e terrível que os objetos adquirem no cinema, grandeza de intensidade, que é também a escala da arte negra, das máscaras indígenas, dos fetiches primitivos e exprime a atividade latente, o ovo, a formidável soma de energia permanente contida em todo objeto inanimado".
A poesia contida na palpitação muda e terrível da matéria, tema caro aos futuristas, logo em seguida dá lugar a outra ordem de valorização estética. Morravagin escapa do asilo, com a ajuda do narrador. Explica-lhe a origem de sua doença mental. Uma infância solitária e hiperexcitada num castelo húngaro (pensamos nas delicadezas de Rilke) acentuara em Morravagin os traços da degeneração, da loucura congênita.
"Apaixonei-me exclusivamente por objetos inestéticos, mal-e-mal moldados, muitas vezes em matéria bruta, matéria-prima", conta Morravagin. "Uma lata de biscoitos, um ovo de avestruz, uma máquina de costura, um pedaço de quartzo, um lingote de chumbo, um cano de aquecedor. Passava os dias a manipulá-los, apalpá-los, cheirá-los." Pensamos em Lautréamont; e a matéria futurista se torna objeto surrealista.
Morravagin passará dos instantes de estesia sexualizada ao culto da ação, do terror, da aventura, da guerra. Numa página impressionante, ele foge da Rússia num vagão blindado e se depara com uma cena de aborto e suicídio. Em poucos parágrafos, passa-se do romance de espionagem para o poema expressionista. Todos os "ismos" modernos se sucedem e se cruzam no texto de Cendrars; e talvez o livro inteiro possa ser lido como uma espécie de fenomenologia da vanguarda européia, que o autor sopesa sem alegria, mas também sem desencanto.
Talvez esteja nessa sua "mestiçagem" espiritual o segredo da afinidade entre Cendrars e os brasileiros. "Morravagin" foi escrito, em parte, durante uma das viagens que Cendrars fez ao Brasil.
O posfácio do autor, historiando a tumultuada redação do romance, é um exemplo de modéstia literária e de simpatia humana. Um roteiro de cinema supostamente escrito pelo próprio Morravagin, "O Fim do Mundo Filmado pelo Anjo Notre-Dame" completa o livro, que também conta com excelentes notas da tradutora Dorothée de Bruchard e do coordenador da edição, Carlos Augusto Calil.


Morravagin
    
Autor: Blaise Cendrars
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 40 (336 págs.)



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