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São Paulo, sábado, 03 de maio de 2003

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"O AJUDANTE"

Inocência fora do lugar é chave da literatura de Walser

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

No centro da vida e da obra do suíço Robert Walser (1878-1956) há uma incompatibilidade e um descompasso. Considerado por Walter Benjamin um precursor de Kafka, que o admirava, Walser passou a maior parte da vida no ostracismo, esquecido e marginalizado pelo mundo literário, internado em clínicas psiquiátricas.
Deixou inúmeros textos curtos, entre eles os chamados "microgramas", escritos numa caligrafia minúscula. Publicou apenas três romances, o suficiente para estar entre os escritores mais importantes e injustiçados do século 20.
No centro de "O Ajudante" (1908), o primeiro a sair no Brasil, com tradução de Zé Pedro Antunes, há um homem tão inadequado quanto o autor. Um homem que sofre por estar só, por não pertencer a nada nem a ninguém, e que, para se integrar, procura adaptar-se ao papel do subalterno, nem sempre com sucesso. O próprio Walser frequentou, em Berlim, uma escola de formação de empregados domésticos, na qual se inspirou para a obra-prima "Jakob von Gunten" (1909).
A ironia dessa escola especializada em fazer de seus alunos verdadeiros zeros à esquerda está também na vontade conflituosa que leva o protagonista de "O Ajudante" a servir com dedicação ao patrão que o humilha, embora às vezes perca o controle e reaja como um louco. O romance, que conta os meses que o ajudante passa a serviço de um empreendedor cujas invenções acabam por levá-lo à falência, está baseado na experiência de Walser como secretário de um engenheiro.
Entre 1894 e 1904, o escritor mudou 19 vezes de casa e nove vezes de emprego. Essa incompatibilidade, acompanhada por um desejo louco de pertencer, dilacera o ajudante. O lugar do empregado, ao mesmo tempo em que o põe em desacordo com o mundo, faz dele um devedor. O ajudante não tem idéia das suas capacidades; elas dependem exclusivamente da avaliação do patrão. Se por um lado essa relação o massacra, não consegue viver fora dela. É uma relação de amor e ódio. Mas, assim como o ajudante de repente explode e reage à humilhação, dizendo ao patrão coisas fora de hora e de lugar, também Walser deixa escapar de vez em quando uma frase "inadequada", absurda e inesperada. É como se ao escritor, tanto quanto aos olhos de uma criança, tivesse sido dada a chance de ver tudo pela primeira vez.
A idéia de uma inocência fora do lugar, de certa forma recuperada pelo artista (e representada muitas vezes pela volta à natureza, por passeios no campo ou nas montanhas), é a chave da literatura de Walser. Integrar-se à sociedade dos homens é perder a inocência. Vem daí a ambiguidade desse mal-estar, a vantagem de manter-se numa relação de integração impossível, como empregado, sem o entusiasmo dos empreendedores pelos negócios e pela vida burguesa, a despeito da culpa e das humilhações decorrentes dessa posição.
"Onde há crianças, sempre haverá injustiças." Entre os filhos do patrão, há uma menina que é sempre maltratada e perseguida. O ajudante nota que os castigos criam um círculo vicioso. A menina é também a menos interessante e original das crianças do patrão. A menos autêntica, incapaz de ter idéias ou desejos próprios. "As idéias novas só podem provir de corações verdadeiramente infantis: disso os açoitados e desdenhados jamais serão capazes. Os verdadeiros pedidos são sempre de primeira, nunca de segunda mão, e exatamente o mesmo se dá com as obras de arte." Ao adequar os homens ao seu funcionamento, a sociedade os faz menos artistas e menos crianças, os faz ter desejos de segunda mão. Os textos de Walser são obra de um homem que tinha desejos de primeira mão, e que pagou por isso.


O Ajudante
Der Gehülfe
    
Autor: Robert Walser
Editora: Arx
Quanto: R$ 42 (336 págs.)



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