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"O AJUDANTE"
Inocência fora do lugar é chave da literatura de Walser
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
No centro da vida e da obra
do suíço Robert Walser
(1878-1956) há uma incompatibilidade e um descompasso. Considerado por Walter Benjamin um
precursor de Kafka, que o admirava, Walser passou a maior parte
da vida no ostracismo, esquecido
e marginalizado pelo mundo literário, internado em clínicas psiquiátricas.
Deixou inúmeros textos curtos,
entre eles os chamados "microgramas", escritos numa caligrafia
minúscula. Publicou apenas três
romances, o suficiente para estar
entre os escritores mais importantes e injustiçados do século 20.
No centro de "O Ajudante"
(1908), o primeiro a sair no Brasil,
com tradução de Zé Pedro Antunes, há um homem tão inadequado quanto o autor. Um homem
que sofre por estar só, por não
pertencer a nada nem a ninguém,
e que, para se integrar, procura
adaptar-se ao papel do subalterno, nem sempre com sucesso. O
próprio Walser frequentou, em
Berlim, uma escola de formação
de empregados domésticos, na
qual se inspirou para a obra-prima "Jakob von Gunten" (1909).
A ironia dessa escola especializada em fazer de seus alunos verdadeiros zeros à esquerda está
também na vontade conflituosa
que leva o protagonista de "O
Ajudante" a servir com dedicação
ao patrão que o humilha, embora
às vezes perca o controle e reaja
como um louco. O romance, que
conta os meses que o ajudante
passa a serviço de um empreendedor cujas invenções acabam
por levá-lo à falência, está baseado na experiência de Walser como secretário de um engenheiro.
Entre 1894 e 1904, o escritor mudou 19 vezes de casa e nove vezes
de emprego. Essa incompatibilidade, acompanhada por um desejo louco de pertencer, dilacera o
ajudante. O lugar do empregado,
ao mesmo tempo em que o põe
em desacordo com o mundo, faz
dele um devedor. O ajudante não
tem idéia das suas capacidades;
elas dependem exclusivamente da
avaliação do patrão. Se por um lado essa relação o massacra, não
consegue viver fora dela. É uma
relação de amor e ódio. Mas, assim como o ajudante de repente
explode e reage à humilhação, dizendo ao patrão coisas fora de hora e de lugar, também Walser deixa escapar de vez em quando uma
frase "inadequada", absurda e
inesperada. É como se ao escritor,
tanto quanto aos olhos de uma
criança, tivesse sido dada a chance de ver tudo pela primeira vez.
A idéia de uma inocência fora
do lugar, de certa forma recuperada pelo artista (e representada
muitas vezes pela volta à natureza,
por passeios no campo ou nas
montanhas), é a chave da literatura de Walser. Integrar-se à sociedade dos homens é perder a inocência. Vem daí a ambiguidade
desse mal-estar, a vantagem de
manter-se numa relação de integração impossível, como empregado, sem o entusiasmo dos empreendedores pelos negócios e
pela vida burguesa, a despeito da
culpa e das humilhações decorrentes dessa posição.
"Onde há crianças, sempre haverá injustiças." Entre os filhos do
patrão, há uma menina que é
sempre maltratada e perseguida.
O ajudante nota que os castigos
criam um círculo vicioso. A menina é também a menos interessante e original das crianças do patrão. A menos autêntica, incapaz
de ter idéias ou desejos próprios.
"As idéias novas só podem provir
de corações verdadeiramente infantis: disso os açoitados e desdenhados jamais serão capazes. Os
verdadeiros pedidos são sempre
de primeira, nunca de segunda
mão, e exatamente o mesmo se dá
com as obras de arte." Ao adequar
os homens ao seu funcionamento, a sociedade os faz menos artistas e menos crianças, os faz ter desejos de segunda mão. Os textos
de Walser são obra de um homem
que tinha desejos de primeira
mão, e que pagou por isso.
O Ajudante
Der Gehülfe
Autor: Robert Walser
Editora: Arx
Quanto: R$ 42 (336 págs.)
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