São Paulo, quarta-feira, 03 de maio de 2006

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HISTÓRIA

Para Sebag Montefiore, não houve "gap" entre Lênin e Stálin


Execuções sustentaram o regime, diz historiador

Divulgação
Stálin durante parada; atrás dele, Mikoian, Khruchióv, Malenkov, Béria e Mólotov


SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Começou como uma festa. Acabou em sangue. Para começar a contar como a utopia socialista da Revolução Russa virou um pesadelo que dizimou milhares de pessoas, o historiador britânico Simon Sebag Montefiore, 41, também escolheu um momento festivo que teve um final trágico.
As primeiras páginas de seu gigantesco "Stálin - A Corte do Czar Vermelho" relatam, quase como se fosse um romance, a noite de 8 de novembro de 1932, em que se celebrou a festa do 15º aniversário da revolução e que terminou com o suicídio de Nadia, a depressiva, jovem e bela segunda mulher de Stálin (1879-1953).
Resultado de um trabalho de cinco anos e de um afortunado contato com uma documentação inédita aberta em 1999 pelo arquivo presidencial russo -cartas do ditador, de seus familiares e de pessoas próximas no círculo de poder-, o livro não é uma biografia. Com riqueza de detalhes espantosa, Montefiore descreve como funcionou o aparato de Estado comandado por Stálin desde meados dos anos 20 até sua morte, em 1953.
Montefiore define seu trabalho como uma advertência. Acredita que exista hoje no Ocidente uma espécie de "culto à vilania" que se dedica a pintar tanto Stálin como Hitler como malucos, isolando-os do contexto ideológico que os criou. De maneira nenhuma, entretanto, o livro tenta "humanizar" o personagem. Pelo contrário, o autor é implacável com o ditador e faz questão de jogar luz no sangue derramado por expurgos, perseguição aos kulaks (pequenos agricultores que empregavam camponeses), assassinatos de homens de sua confiança e de suas mulheres. Além de descrever como a fome se alastrou pelo país durante os anos da coletivização, promovida para financiar a industrialização soviética.
De seu escritório em Londres, onde segue debruçado em mais um livro sobre o tema, Montefiore conversou com a Folha, por telefone.

Folha - Por que Stálin?
Simon Sebag Montefiore -
Por ser uma das figuras formadoras do século 20 que ajudou a construir o mundo em que vivemos. Stálin simboliza todas as formas de governantes cruéis que conhecemos e mesmo assim permaneceu décadas como um mistério.

Folha - E esse mistério se explica apenas pela posição da esquerda ocidental, que fez vista grossa para seus crimes?
Montefiore -
Isso é parte da verdade. Mas em muito contou também a habilidade de Stálin de criar uma imagem de "homem de aço" e de esconder a forma como levava o regime. E, sim, a esquerda no Ocidente tomou uma decisão, que é extraordinária para países democráticos como os EUA, o meu ou o seu. Que foi a de defender a idéia de que aqueles mortos compensavam por uma coisa que valia a pena. Seu argumento era que, se tivesse havido erros sob Stálin, isso seria uma distorção dos ideais de Lênin. Esses sim, na visão desses intelectuais, seriam bons, decentes e justos.
Mas é claro que nada disso é verdade. A verdade é que todo o regime foi construído à base de assassinatos desde o primeiro dia.

Folha - Você não acredita que as coisas simplesmente possam ter saído de controle?
Montefiore -
Não. Desde a criação da Tcheca [polícia secreta] por Lênin a idéia era criar uma máquina de matar sem limites. Não há um "gap" entre Lênin e Stálin nesse sentido. E mais: a verdadeira razão pela qual Lênin promoveu Stálin foi por que sabia que ele seria o mais extremo.

Folha - Como você teve acesso a essa documentação inédita?
Montefiore -
Tive uma sorte incrível. Quando decidi fazer o livro, fui aos arquivos em Moscou, em 1999, e me disseram: "Você tem sorte. Acabamos de abrir os arquivos de Stálin".

Folha - Você começou com a morte de Nadia por ser um episódio importante historicamente ou por seu potencial literário?
Montefiore -
Em parte, sim, escolhi por ser um episódio dramático. Mas também achei que seria uma boa forma de dar uma visão panorâmica daqueles que rodeavam Stálin, de como eram as festas e a vida no Kremlin. É uma passagem em que é possível perceber como era íntimo aquele mundo.

Folha - Mas isso não leva a crer que há uma relação entre a morte de Nadia e o o princípio do terror?
Montefiore -
Alguns leram dessa maneira, mas me interpretaram mal. Com Nadia viva ou morta Stálin teria feito o que fez. Mas há aspectos do terror relacionados à sua morte, como a desconfiança de que as mulheres de seus homens de confiança representavam um risco à segurança e que, muitas vezes, tinham de ser mortas.

Folha - Além de ter parado Hitler, há algo bom em seu legado?
Montefiore -
Quero reforçar que penso que Stálin foi um dos mais abomináveis líderes de um dos mais abomináveis regimes que já existiram. Mas, sim, houve avanços. A educação melhorou e a União Soviética se tornou uma das duas superpotências do mundo. É uma grande conquista.

Folha - Stálin era paranóico ou só manipulava a paranóia do regime?
Montefiore -
As duas coisas. Mas é bom esclarecer que Stálin tinha todas as razões do mundo para ser paranóico. Os bolcheviques desenvolveram a paranóia durante o regime czarista, quando estavam na vida clandestina. O clima era de desconfiança, havia informantes, agentes duplos. Depois, quando chegaram ao poder, foram ameaçados por outros países.

Folha - Mas Stálin era mais paranóico que os outros?
Montefiore -
Sim. E por isso ele foi sempre mais cruel, mais extremo que todos.

Folha - Você diz que os bolcheviques eram obcecados com trabalho, mas também que adoravam tirar férias. Qual é a verdade?
Montefiore -
Eles estavam sempre trabalhando nas férias, planejando ações. Eram férias políticas, pois passavam o tempo ao redor de Stálin. Ou seja, eram férias bastante estressantes [risos].

Folha - Você tem posição política?
Montefiore -
Sou um historiador, e historiadores não devem ter ideologia. A única ideologia que tenho é crer que cada vida humana é valiosa e deve ser preservada.


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