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TEATRO
Mostra comprova hibridismo da cena contemporânea
SILVIA FERNANDES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Sem dúvida a violência foi o
traço mais forte da Mostra de
Dramaturgia Contemporânea de
Débora Duboc, Élcio Nogueira
Seixas, Luah Guimarãez e Renato
Borghi, atores do Núcleo Teatro
Promíscuo que, em pouco mais
de um mês, revezaram-se em trabalho audacioso e exaustivo com
55 personagens e 15 textos de autores contemporâneos.
É interessante observar como o
testemunho da exclusão social,
que se impõe em cada esquina,
contamina os dramaturgos da
mostra de tal forma que, mais que
jornalistas de seu tempo, parecem
antropólogos experimentando
por dentro os flagrantes exibidos
no palco como "peças-paisagens"
urbanas.
É o caso de Pedro Vicente, que
apresenta em "Sem Memória" sujeitos invadidos pela mídia pela
ótica de quem é fruto da invasão.
Semelhantes a esse, os textos
mais potentes e incômodos do ciclo, como "Três Cigarros e a Última Lasanha", de Fernando Bonassi e Victor Navas, "Deve Ser do
Caralho o Carnaval em Bonifácio", de Mário Bortolotto, "O Dia
Mais Feliz da Sua Vida", de Dionísio Neto, e "Dentro", de Newton
Moreno, nascem de um desejo intervencionista mais interessado
no real que no realismo.
Daí resulta uma espécie de dramaturgia bruta que transpira uma
insubordinação quase selvagem,
responsável pela compressão das
tramas em sínteses cruas, curtas,
socos no estômago muito próximos dos conflitos cerrados da tragédia.
Sintomaticamente, de uma tragédia da cidade, como todas, que
nesse caso já nasce à beira do abismo, poluída de humor negro, e
dispensa evolução do enredo e
personagens estruturadas, fazendo pouco das receitas de peça
bem-feita e dos macetes de construção dramática eficientes em
outros tempos, mas incapazes de
exprimir a turbulência que vai
por aí. Por isso é simplista pensar
que certos textos da mostra ficaram na promessa por serem mal
construídos do ponto de vista
dramático. Aliás, os textos menos
dramáticos foram os melhores.
Os movimentos de incorporação da narrativa ao drama, como
o do monólogo do protagonista
anônimo de "Três Cigarros e a Última Lasanha" ou do "fist-fucking" de "Dentro", provam que a
retomada e a adaptação, via palco,
de procedimentos da novela, do
conto, da poesia e do cinema geram textos híbridos que respondem melhor às exigências contemporâneas de expressão.
Não por acaso, dramaturgos como Fernando Bonassi, Victor Navas, Pedro Vicente, Dionísio Neto
e Mário Bortolotto têm formação
teatral pouco ortodoxa e, especialmente o primeiro, vive do
trânsito constante entre jornalismo, romance, roteiro e conto minimalista. Esse hibridismo é o sintoma mais visível do "desconforto
narrativo" que acompanha essas
dramatizações da insegurança individual e da criminalização sistemática das questões públicas.
E aparece na mistura de sonhos,
pobreza e palavrões de "Bonifácio", de Bortolotto, na guerra civil
de intimidade e urbanidade em
"Blitz", de Bosco Brasil, na justaposição de simbolismo e cotidiano em "O Pelicano", de Marici Salomão, no contraste de candura e
tortura em "Cordialmente Teus",
de Aimar Labaki, na associação
de máscara e tempo da fama de
"A Meia Hora de Abelardo", de
Hugo Possolo, na confusão de mito e publicidade em "Só, Ifigênia,
sem Teu Pai", de Sergio Salvia
Coelho, e na instabilidade das
projeções subjetivas de "Sonho de
Núpcias", de Otavio Frias Filho.
Ou ainda nas variações de registro entre palco e rua, "performance" e cidade, presentes nos textos
turbulentos de Dionísio Neto,
Victor Navas e Fernando Bonassi.
Silvia Fernandes é professora de história do teatro da ECA-USP
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