São Paulo, quarta-feira, 03 de julho de 2002

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TEATRO

Mostra comprova hibridismo da cena contemporânea

SILVIA FERNANDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sem dúvida a violência foi o traço mais forte da Mostra de Dramaturgia Contemporânea de Débora Duboc, Élcio Nogueira Seixas, Luah Guimarãez e Renato Borghi, atores do Núcleo Teatro Promíscuo que, em pouco mais de um mês, revezaram-se em trabalho audacioso e exaustivo com 55 personagens e 15 textos de autores contemporâneos.
É interessante observar como o testemunho da exclusão social, que se impõe em cada esquina, contamina os dramaturgos da mostra de tal forma que, mais que jornalistas de seu tempo, parecem antropólogos experimentando por dentro os flagrantes exibidos no palco como "peças-paisagens" urbanas.
É o caso de Pedro Vicente, que apresenta em "Sem Memória" sujeitos invadidos pela mídia pela ótica de quem é fruto da invasão.
Semelhantes a esse, os textos mais potentes e incômodos do ciclo, como "Três Cigarros e a Última Lasanha", de Fernando Bonassi e Victor Navas, "Deve Ser do Caralho o Carnaval em Bonifácio", de Mário Bortolotto, "O Dia Mais Feliz da Sua Vida", de Dionísio Neto, e "Dentro", de Newton Moreno, nascem de um desejo intervencionista mais interessado no real que no realismo.
Daí resulta uma espécie de dramaturgia bruta que transpira uma insubordinação quase selvagem, responsável pela compressão das tramas em sínteses cruas, curtas, socos no estômago muito próximos dos conflitos cerrados da tragédia.
Sintomaticamente, de uma tragédia da cidade, como todas, que nesse caso já nasce à beira do abismo, poluída de humor negro, e dispensa evolução do enredo e personagens estruturadas, fazendo pouco das receitas de peça bem-feita e dos macetes de construção dramática eficientes em outros tempos, mas incapazes de exprimir a turbulência que vai por aí. Por isso é simplista pensar que certos textos da mostra ficaram na promessa por serem mal construídos do ponto de vista dramático. Aliás, os textos menos dramáticos foram os melhores.
Os movimentos de incorporação da narrativa ao drama, como o do monólogo do protagonista anônimo de "Três Cigarros e a Última Lasanha" ou do "fist-fucking" de "Dentro", provam que a retomada e a adaptação, via palco, de procedimentos da novela, do conto, da poesia e do cinema geram textos híbridos que respondem melhor às exigências contemporâneas de expressão.
Não por acaso, dramaturgos como Fernando Bonassi, Victor Navas, Pedro Vicente, Dionísio Neto e Mário Bortolotto têm formação teatral pouco ortodoxa e, especialmente o primeiro, vive do trânsito constante entre jornalismo, romance, roteiro e conto minimalista. Esse hibridismo é o sintoma mais visível do "desconforto narrativo" que acompanha essas dramatizações da insegurança individual e da criminalização sistemática das questões públicas.
E aparece na mistura de sonhos, pobreza e palavrões de "Bonifácio", de Bortolotto, na guerra civil de intimidade e urbanidade em "Blitz", de Bosco Brasil, na justaposição de simbolismo e cotidiano em "O Pelicano", de Marici Salomão, no contraste de candura e tortura em "Cordialmente Teus", de Aimar Labaki, na associação de máscara e tempo da fama de "A Meia Hora de Abelardo", de Hugo Possolo, na confusão de mito e publicidade em "Só, Ifigênia, sem Teu Pai", de Sergio Salvia Coelho, e na instabilidade das projeções subjetivas de "Sonho de Núpcias", de Otavio Frias Filho.
Ou ainda nas variações de registro entre palco e rua, "performance" e cidade, presentes nos textos turbulentos de Dionísio Neto, Victor Navas e Fernando Bonassi.


Silvia Fernandes é professora de história do teatro da ECA-USP



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