São Paulo, sábado, 03 de agosto de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Desafeto do vencedor do Nobel, com quem concorre ao posto de melhor escritor português, tem livro de 83 lançado no Brasil

O Anti-Saramago

CASSIANO ELEK MACHADO

DA REPORTAGEM LOCAL

O trocadilho que lhe persegue é o do "Lobo solitário". Avesso a entrevistas, inimigo dos tintins dos coquetéis, "anti-sócio" de toda e qualquer agremiação, António Lobo Antunes tem produzido em sua toca aquilo que José Saramago constrói diante de uma alcatéia de holofotes e microfones.
Tal como o Nobel de 1998, o escritor lisboeta vem fazendo, em língua portuguesa, uma das melhores literaturas do mundo.
A opinião, que tem respaldo em todos os principais idiomas do Ocidente, vem se arrastando em marcha lenta em direção ao único grande mercado editorial lusófono fora de Portugal. A editora Rocco está lançando no Brasil o sexto dos 16 livros escritos por esse autor classificado recentemente pelo jornal espanhol "El País" como "o maior escritor vivo".
Não se trata de "Não Entres Tão Depressa nessa Noite Escura", de 2000, nem de "Que Farei Quando Tudo Arde?", publicado no ano passado. É "Fado Alexandrino", lançado há quase duas décadas em Portugal, que cruza o Atlântico pela primeira vez. Não é à toa que durante a feira de livros de Frankfurt de 2000, em meio ao incenso generalizado que recebia de público e crítica alemão, o escritor respondeu da seguinte forma o pedido de entrevista da Folha: "Deixem o Brasil para o Saramago. É o único lugar que ele tem".
Desta vez foi diferente. Com voz de cordeiro, não de lobo, o autor conversou generosamente pelo telefone, de seu escritório na capital portuguesa. "Puxa, estão lançando "Fado Alexandrino'? É muito curioso. Meus livros saem por toda parte, menos por aí. Estou menos editado no Brasil que em países como a Eslovênia ou a Coréia", comenta Lobo Antunes, que logo relembra que é neto de um brasileiro, de Belém do Pará.
O livro que está sendo lançado no Brasil, espécie de sinfonia que narra o reencontro em Lisboa de oficiais portugueses que haviam servido na guerra colonial entre Portugal e Moçambique, está hoje tão distante na memória do autor quanto Eslovênia e Coréia.
"O que mais me recordo é que é um romance muito extenso e que quando estava terminando fui reler o começo e não gostei. Reescrevi tudo." Reescrever, mais do que escrever, é para Lobo Antunes a medula literária.
"Difícil não é escrever, é corrigir. Quando você faz uma primeira versão, você sente as coisas de uma maneira muito intensa. Depois, quando vai ler a frio, nota que há uma grande distância entre a intensidade e a emoção inicial e os resultados que ficam no papel. Então começa o trabalho de diminuir essa distância."
A atividade de apartar a gordura das palavras, de "cortar até o osso", Lobo Antunes faz ao ritmo de seu poeta predileto na língua portuguesa. Alguém aí falou Fernando Pessoa? Errado. É o nosso João Cabral de Melo Neto quem ele evoca: ""Falo somente com o que falo: com as mesmas 20 palavras/ girando em torno do sol que as limpa do que não é faca".
Fernando Pessoa seria coisa de Saramago, autor de "O Ano da Morte de Ricardo Reis", seu maior desafeto. Sua opinião sobre Saramago? "É um pobre inútil. Existem muitos escritores que são propagandistas de si mesmos", já disse Antunes, inclusive atacando o oportunismo do antagonista de publicar um romance sobre o heterônimo de Pessoa no ano do centenário do poeta.
Há quem diga que por trás da acidez de Lobo Antunes há apenas as cinco letras que formam a palavra Nobel, prêmio que ele esteve próximo de ganhar. Um dos grandes críticos literários atuais, George Steiner reabriu a ferida em palestra recente em Lisboa.
Diante do próprio Saramago, que assistia a conferência, o crítico franco-americano chamou Lobo Antunes de "romancista esmagador" e disse que se tivesse feito parte do comitê Nobel teria defendido a partilha do prêmio entre Saramago e Lobo Antunes. ""Diria a Saramago: não se zangue, vamos dar aos dois", diz.
Relacionar um ao outro é difícil. Tarefa para catedrática, a professora catedrática da Universidade de Lisboa Maria Alzira Seixo, que acaba de lançar em Portugal o livro de ensaios "Os Romances de António Lobo Antunes".
Em entrevista à Folha, por e-mail, ela compara. "São muitíssimo diferentes. Saramago tem um investimento alegórico e comunitário que claramente domina a sua ficção. Lobo Antunes, com uma marca estilística que respeita de modo dominante a escrita e a forma como o indivíduo nela dramaticamente se afeiçoa para o texto e para a vida."
De fato, tudo o que Saramago investe na alegoria, Lobo Antunes buscas nas palavras. "Para mim, muitas vezes a intriga não é mais do que o prego no qual se penduram os quadros", diz o escritor. Citando Clarice Lispector, que admira como escritora como admirou como amiga, ele diz: "As palavras são apenas anzóis, para apanhar o que está nas entrelinhas".
E essas entrelinhas, segundo a professora Seixo, são as seguintes. "O essencial se concentra no modo como seus personagens exprimem a sua vivência do cotidiano, que é majoritariamente invadida pela evocação do passado e da infância, mas também tingida pelos sonhos que se projetam no futuro, pelas fantasias que há lugar para querer viver."



Texto Anterior: "Os retratos de Oscar Wilde": Obra une Dorian Gray a amor de Shakespeare
Próximo Texto: "Fado" ensaia todo Lobo Antunes, diz crítica
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.