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CRÍTICA
Imagens soltas tecem nova ordem portuguesa após fim do salazarismo
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Um grupo de ex-oficiais do
Exército português em Moçambique se reúne num restaurante de Lisboa, anos depois da
revolução que derrubou a ditadura salazarista e da independência
da colônia africana. De madrugada, vão a um cabaré, encharcam-se de champanhe e rumam ao
apartamento de um deles, acompanhados de prostitutas. Quase
amanhecendo, ocorre um assassinato. Seguem-se tentativas de livrar-se do corpo. Algumas páginas de conclusão adicionais e se
encerra este romance.
Se quisermos, a história de "Fado Alexandrino" se resume a esse
enredo. Mas, como as "madeleines" de Proust não epitomam o
"Em Busca do Tempo Perdido", a
ação presente é a ponta do iceberg
do texto de Lobo Antunes. Serve
para dar liga às suas inúmeras
partes, formadas por fluxos superpostos de consciência e de memória. A superposição é a marca
da originalidade e da dificuldade
da obra. Tomando o "fado" do título como mote, percebemos que
ele escreveu não na forma de narrativa linear, mas de composição
musical. As diversas vozes inseridas na obra se inter-relacionam
como trechos melódicos.
Como na música, a narrativa
não respeita os conectivos lógicos
a que estamos acostumados: os
"enquanto isso", os "anos atrás",
os "portanto". Lobo Antunes
mistura vozes diversas, espaços e
tempos distintos, sem aviso prévio, às vezes numa mesma frase.
O resultado dessa técnica é um estranhamento que acompanha o
leitor por algumas boas dezenas
de páginas. Talvez por isso a obra
tenha demorado quase 20 anos
para ser lançada no Brasil.
No entanto, se o leitor perseverar, deixando a narrativa fluir, logo começará a ouvir música. A
música é uma arte temporal, enquanto a pintura, digamos, inscreve-se no espaço. Em "Fado
Alexandrino", os dois meios
-espaço e tempo- se complementam. A obra se baseia no fluxo do tempo e se compõe de forma musical. A simultaneidade,
porém, também é característica
da pintura, sobretudo da cubista.
Como em Picasso, o romance nos
obriga a contemplar vários ângulos de um mesmo objeto, fixado
diante de nós com cores fortes e
metáforas hipnóticas, e a maneira
correta de decodificá-los é imaginá-los todos ao mesmo tempo.
É nesse tecido de imagens soltas
no tempo, capturadas e descritas
pelo mecanismo da memória, que
o romancista traça os acontecimentos de sua história: as atrocidades cometidas na África; a difícil reintegração à sociedade portuguesa; a decadência das elites; a
vulgaridade da pequena burguesia; a guerrilha de extrema esquerda; a Revolução dos Cravos.
Tudo isso se mescla com a patética trajetória dos personagens
principais, desde o início dos anos
70 até o começo dos 80.
Lobo Antunes vociferou que
seu livro "não tem nada a ver com
a guerra colonial", mas é impossível não relacioná-lo com a idéia
do antigo império português.
"Fado", como sabemos, além de
canção triste, também é destino,
sina. "Alexandrino" pode ter várias acepções, mas todas remetem
a Alexandre Magno, rei do império macedônico. Pode parecer irônico que a concepção de grandeza
seja atribuída a esta obra, que trata de um império que não é mais.
Mas Alexandre também marca o
crepúsculo da civilização grega.
Em seu fado crepuscular, o autor tece o destino da dissolução e
da ruína. Mas também canta a
sorte do realinhamento português em face da modernidade.
Aos poucos, o país precisou recompor-se com a nova ordem
mundial. Continuando com o cotejo, se Portugal é Alexandria,
guardiã de uma civilização desmantelada, Roma é o mundo globalizado que se anunciava nos
anos 80, tão destoante do caráter
lusitano quanto as Grandes Navegações são das megaespeculações.
A "madeleine" de Lobo se oferece
a comentário variado.
Fado Alexandrino
Autor: António Lobo Antunes
Editora: Rocco
Quanto: R$ 49 (608 págs.)
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