São Paulo, sábado, 03 de agosto de 2002

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CRÍTICA

Imagens soltas tecem nova ordem portuguesa após fim do salazarismo

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Um grupo de ex-oficiais do Exército português em Moçambique se reúne num restaurante de Lisboa, anos depois da revolução que derrubou a ditadura salazarista e da independência da colônia africana. De madrugada, vão a um cabaré, encharcam-se de champanhe e rumam ao apartamento de um deles, acompanhados de prostitutas. Quase amanhecendo, ocorre um assassinato. Seguem-se tentativas de livrar-se do corpo. Algumas páginas de conclusão adicionais e se encerra este romance.
Se quisermos, a história de "Fado Alexandrino" se resume a esse enredo. Mas, como as "madeleines" de Proust não epitomam o "Em Busca do Tempo Perdido", a ação presente é a ponta do iceberg do texto de Lobo Antunes. Serve para dar liga às suas inúmeras partes, formadas por fluxos superpostos de consciência e de memória. A superposição é a marca da originalidade e da dificuldade da obra. Tomando o "fado" do título como mote, percebemos que ele escreveu não na forma de narrativa linear, mas de composição musical. As diversas vozes inseridas na obra se inter-relacionam como trechos melódicos.
Como na música, a narrativa não respeita os conectivos lógicos a que estamos acostumados: os "enquanto isso", os "anos atrás", os "portanto". Lobo Antunes mistura vozes diversas, espaços e tempos distintos, sem aviso prévio, às vezes numa mesma frase. O resultado dessa técnica é um estranhamento que acompanha o leitor por algumas boas dezenas de páginas. Talvez por isso a obra tenha demorado quase 20 anos para ser lançada no Brasil.
No entanto, se o leitor perseverar, deixando a narrativa fluir, logo começará a ouvir música. A música é uma arte temporal, enquanto a pintura, digamos, inscreve-se no espaço. Em "Fado Alexandrino", os dois meios -espaço e tempo- se complementam. A obra se baseia no fluxo do tempo e se compõe de forma musical. A simultaneidade, porém, também é característica da pintura, sobretudo da cubista. Como em Picasso, o romance nos obriga a contemplar vários ângulos de um mesmo objeto, fixado diante de nós com cores fortes e metáforas hipnóticas, e a maneira correta de decodificá-los é imaginá-los todos ao mesmo tempo.
É nesse tecido de imagens soltas no tempo, capturadas e descritas pelo mecanismo da memória, que o romancista traça os acontecimentos de sua história: as atrocidades cometidas na África; a difícil reintegração à sociedade portuguesa; a decadência das elites; a vulgaridade da pequena burguesia; a guerrilha de extrema esquerda; a Revolução dos Cravos. Tudo isso se mescla com a patética trajetória dos personagens principais, desde o início dos anos 70 até o começo dos 80.
Lobo Antunes vociferou que seu livro "não tem nada a ver com a guerra colonial", mas é impossível não relacioná-lo com a idéia do antigo império português. "Fado", como sabemos, além de canção triste, também é destino, sina. "Alexandrino" pode ter várias acepções, mas todas remetem a Alexandre Magno, rei do império macedônico. Pode parecer irônico que a concepção de grandeza seja atribuída a esta obra, que trata de um império que não é mais. Mas Alexandre também marca o crepúsculo da civilização grega.
Em seu fado crepuscular, o autor tece o destino da dissolução e da ruína. Mas também canta a sorte do realinhamento português em face da modernidade. Aos poucos, o país precisou recompor-se com a nova ordem mundial. Continuando com o cotejo, se Portugal é Alexandria, guardiã de uma civilização desmantelada, Roma é o mundo globalizado que se anunciava nos anos 80, tão destoante do caráter lusitano quanto as Grandes Navegações são das megaespeculações. A "madeleine" de Lobo se oferece a comentário variado.


Fado Alexandrino
    
Autor: António Lobo Antunes
Editora: Rocco
Quanto: R$ 49 (608 págs.)



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