São Paulo, sábado, 03 de agosto de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"O QUE É SER RIO, E CORRER?"

Guzik focaliza sinfonia de metrópole

CRÍTICO DA FOLHA

Ao contrário do que afirmou Silviano Santiago em recente artigo no Mais!, os escritores brasileiros estão atentos sim para "os problemas dominantes na classe média". Um bom exemplo disso é o primeiro livro de contos do jornalista Alberto Guzik, "O Que É Ser Rio, e Correr?".
A cena quase toda se passa em São Paulo, com grande profusão de paisagens urbanas, como a avenida Consolação e uma periferia não nomeada. A cidade emerge do livro como metrópole caótica e fervilhante, onde a disparidade social é tão flagrante quanto uma camada de poluição.
Nesse espaço transitam os personagens de Guzik: um ator de filme pornô, um artista plástico drogado, uma empregada doméstica, entre outros. Há a impressão de que o escritor procurou abarcar uma grande gama de figuras, da baixa à alta burguesia, em busca de um painel tão amplo quanto o da Dublin de James Joyce em "Os Dublinenses".
Mas há outro fator a alinhar os personagens e situações: a conjugação entre ignorância e deslumbramento. Nos sete contos do livro, os personagens se deparam com objetos que lhes são desconhecidos e que exercem sobre eles fascinação e repulsa. Em geral, o objeto é um produto artístico -um livro, um filme-, mas nem sempre.
Provocados por esses objetos desconhecidos, os personagens sofrem uma espécie de deslumbramento. O título, retirado de um poema de Fernando Pessoa, sugere o fenômeno. O olhar é o instrumento com o qual o discernimento se torna possível, mas é também o responsável por levar o objeto para dentro do sujeito, fazendo-o esquecer-se de si mesmo. Objeto e sujeito se confundem.
Os sujeitos de "O Que É Ser Rio..." sentem-se provocados pelos objetos observados porque vêem-se refletidos neles. Os Tyrones de "Longa Jornada Noite Adentro", de O'Neill, fazem o crítico de teatro lembrar-se da própria família, por exemplo.
A distorção especular é ainda maior no primeiro conto, "Adonias". O personagem-título é um galã pornô preconceituoso e truculento. Vai ver "Hamlet" de Lawrence Olivier por sugestão de um solícito iluminador. De início entediado, deixa-se aos poucos prender pela fita. O ator inglês provoca-lhe o desejo, a ponto de a frase "ser ou não ser" atingir tonalidade gay. No set, maltrata a atriz pornô como Hamlet maltratou Ofélia. Depois, arremedando o príncipe da Dinamarca, a manda ir para o convento. Seu destino também se tinge de sangue.
Se, num nível mais profundo, a narrativa se sustenta até por conta desses jogos metonímicos, Guzik toma algumas decisões pouco felizes. Adonias, por exemplo, quando pequeno, fora apanhado praticando felação no filho do pastor. Como explicação para seu ódio por homossexuais, o trecho se revela bastante reducionista. Também nos causa surpresa, sendo o autor um jornalista especializado em teatro, e portanto acostumado com a fala dramática, que os diálogos às vezes se mostrem um tanto frouxos, carentes de rigor, ritmo e concisão. Nada que perturbe em excesso, porém, essa multifacetada sinfonia paulistana, capturada pelas lentes da arte, do deslumbramento e do desejo.
(MARCELO PEN)


O Que É Ser Rio, e Correr?
   
Autor: Alberto Guzik
Organizadora: Iluminuras
Quanto: R$ 33 (208 págs.)



Texto Anterior: "O cabreiro tresmalhado": Sertão de Ariano Suassuna é visto como súmula do mundo
Próximo Texto: Política cultural: Funarte reduz atividades em SP e no Rio
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.