São Paulo, segunda, 3 de agosto de 1998

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O bebê visto por uma pessoa sem telefone

FERNANDO GABEIRA

Colunista da Folha
Ela trabalha aqui em casa, de segunda a sexta. Gostamos muito dela. Foi como se nascesse alguém da família. Ela é seguidora de Xuxa. Não confundir com uma simples fã.
Seguidor é uma categoria especial, tem privilégios, como ser reconhecida pelos seguranças, aproximar-se da estrela e ser chamada pelo nome nos bastidores do grupo.
Quando começaram os trabalhos de parto, ela se pôs também em movimento. Onde estariam as bandeiras? Precisava de duas bandeiras. Uma do Brasil, outra escrita: Xuxa Meneghel. E era preciso saber onde era essa clínica, que ônibus parava por lá, embora desconfiasse que na porta desse tipo de clínica não costuma parar ônibus.
Ela chegou antes da cesariana, ergueu as bandeiras e sentiu um grande alívio aos 45 minutos do novo dia. Era menina, todos sabiam. A dúvida era se nasceu bem, se a mãe estava bem, se vestia seu pijama beje com listras marrom, se os leõezinhos estavam bem dispostos ao longo do quarto decorado para a ocasião.
Deu tudo certo. No princípio da manhã deixou a clínica e foi encontrar um ônibus lá perto da PUC. Seria mais um dia radiante do inverno do Rio. Sentia-se tranquila e realizada: nasceu a menina, a estrela continuaria pelos anos, décadas.
Disse para ela que havia cartas de protesto nos jornais porque a cobertura de TV deu mais tempo para a menina do que para o leilão das teles.
"Leilão de quê?", perguntou, abrindo o largo sorriso. Quem sai na rua e conversa percebe que vivemos em milhares de galáxias diferentes. Pensamos que a história é uma sucessão de presidentes, de grandes lances econômicos como o leilão das teles, que é povoada de rebeldes com a camisa tapando o rosto e um paralelepípedo na mão.
Para ela, o nascimento do bebê é um marco, um momento de suprema felicidade. Não importa o que aconteça com a revolução digital ou a sorte de usuários de telefones. Olhando a TV, com um vidro do detergente Veja e um paninho na mão, sorria como deve sorrir uma súdita inglesa, cercada de tablóides após o nascimento de mais uma princesa.
O pai da menina é mais bonito que o ministro das Comunicações, com seu cachimbo cor de terra. Nas imediações da clínica São Vicente não há cheiro de gás nem voam pedras pelos ares. Essa é a história que ela escolheu, por que não respeitá-la?
Lembro-me de um filme grego chamado "A Viagem dos Comediantes". Contava a história do país por meio de um grupo teatral que percorria suas principais cidades e refletia sobre os grandes momentos.
Vendo-a comemorar o nascimento, pensei numa outra hipótese: uma história do Brasil contada pela ótica dos seguidores dos grandes artistas. Veio à memória tanta coisa: o enterro de Francisco Alves, a rivalidade Marlene-Emilinha. Onde estavam os fãs de Marlene quando Carlos Lacerda sofreu o atentado na Toneleros? Limpando os vidros da janela do segundo andar?
As possibilidades são tantas que precisariam pelo menos uns seis meses para trabalhar esse argumento. Os seguidores são fãs especiais, que variam de estrela para estrela. Uma ex-seguidora da cantora Simone se aproximou da atriz Isis de Oliveira e conquistou seu coração, prometendo-lhe uma carreira em Hollywood e um casamento com George Clooney, o Batman.
Seguidora na fase de globalização, seu charme era uma ponte com Hollywood. Todos os companheiros de academia da atriz queriam uma foto com ela, afinal iria para a matriz dos sonhos planetários. No Flamengo, nosso clube, chegou-se a organizar uma festa para George Clooney e Julia Roberts, com as camisetas já impressas: bem-vindos George e Julia.
Mentira, foi tudo mentira, como diz a canção, ou se quiserem: é tudo um tecido de mentira, como afirma o pastor de Bergman num discurso fúnebre.
Uma estrela ingênua fantasiou sua seguidora: seguidores ingênuos fantasiando seus ídolos, múltiplas galáxias em movimento. Se Emilinha fosse a favorita da Aeronáutica e Marlene a favorita da Marinha, a história do Brasil teria seguido o mesmo rumo?
A moça que trabalha conosco estuda à noite, combina outras tarefas e está sempre sorrindo. Deve ser ela mesma uma princesa das nações africanas que se instalaram no Maranhão. Sua alegria é ter estado la na clínica, no momento exato.
Ela levantava as bandeiras, olhava para o jardim da clínica e subitamente se lembrou: Clara Nunes esteve internada aqui. Toda uma história escorria com as lágrimas na sua face larga e luminosa. O ex-presidente Geisel também morreu aqui. Isso não sabia, mas talvez apareça num de seus livros de colégio.
Isso significa que o diálogo entre incompatíveis galáxias vai prosseguir, com a diferença que agora teremos telefones portugueses e espanhóis para garantir a mediação.



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