São Paulo, Terça-feira, 03 de Agosto de 1999
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ARNALDO JABOR

O telefone é uma janela aberta para o infinito

Eu sou do tempo em que as geladeiras eram brancas e os telefones eram pretos, escreveu Rubem Braga. Desde então, há o mistério: por que os telefones sempre funcionaram mal neste país? Já escrevi sobre isso quatro anos atrás. Veio a privatização das teles, veio o escândalo das "fitas", veio a carequinha do Carlos Jereissati, veio a Telemar, veio o colapso das discagens DDD e, passada a onda, concluo: continua a saga das discagens fracassadas e, no plano interestadual, pioraram os serviços.
Ligar para São Paulo é uma aventura incerta. Do Rio, 21 e 31 não competem -se igualam em discagens fracassadas. Ligação internacional são de oito a dez tentativas. Telefonar ainda é uma janela aberta para o infinito, dizia Nelson Rodrigues. Por isso, devo repetir a lista de meus conselhos aos discadores de hoje, eu, emérito sofredor desde os remotos tempos do "trote", quando se gastava uma linha para perguntar: "Penico de barro dá ferrugem?"
Saiba, antes de tudo, que as linhas telefônicas têm um comportamento humano (e neurótico). Para domá-las é preciso compreensão e carinho, sendo necessária, às vezes, um pouco de energia, sem exageros que possam levar até a destruição do aparelho, aos gritos de "não aguento mais, canalhas!" Eu mesmo já esmigalhei um "sem-fio" branco, novinho, sapateando em cima dele como uma bailarina espanhola. Foi das mais deliciosas vinganças de minha vida...
No Rio, as linhas são como mulheres difíceis; nunca "dão" de primeira. São coquetes, histéricas. Você liga, não "completa", e aí começa a sofrer como diante de uma Carmen.
E existe um fenômeno que eu batizei de "processo de impregnação progressiva". É o seguinte: só se consegue a ligação na terceira tentativa. Por que três vezes? Ninguém sabe. Mas é o processo da "impregnação". É como um espermatozóide fecundando um óvulo, uma idéia se formando no sistema nervoso. Tudo depende de seu jeitinho, de seu afeto ao ligar. A primeira tentativa é, digamos, um "flirt". A segunda, uma quebra de gelo na relação homem-máquina. Só na terceira discada se dará o contato. Se bem que, mesmo completada a ligação, isso não garante que atingirás o contato com teu amigo, teu amante ou teu "miché", oh admirável estrangeiro! Provavelmente, será "engano". Pode-se ligar para a própria mãe, e atender um crioulo em Bonsucesso, não por um deslize dos dedos, mas por enigmas elétricos no coração das trevas.
Há telefones sádicos e telefones masoquistas. Uns gostam de bater, outros de ser espancados. A maioria, como na vida, é de sádicos. Portanto, a melhor maneira é não deixá-los perceber que você sofre, pois isso os estimularia a mais violências. Telefones detestam gente deprimida que já chega querendo comprovar seu infortúnio. Chegue ao seu telefone com otimismo e esperança. Finja que não desconfia dele, afague-o jucundo e animado, disque com alegres dedinhos, se bem que isso não seja garantia de sucesso, porque o telefone saca mentiras e adulações e pode lhe punir com uma linha cruzada, esse rico universo para o estudo psicossocial do país.
Na linha cruzadas, nunca se flagra o grande crime, o grande negócio, o grande adultério; só o rosto derrubado da cidade, com dois tons de vozes: a lamentação e o rancor. É sempre alguém clamando por justiça ou amor: a desquitada sem pensão, a viúva sem afeto, pequenos serviçais injustiçados, aposentados sem rumo, veados sem bofes, tudo numa rede sinistra de solidão e desencontros. Pelas linhas cruzadas, vemos as almas destruídas, as vítimas de uma miséria existencial escondida nos "conjugados", barracos e botecos. Há tilintares variegados para o seu sofrimento.
Há os tilintares gagos, que se interrompem sem motivo. Há belos tilintares, mas que prenunciam fracasso (só "experts" como eu o percebem...). Esses começam eufóricos e limpos e, súbito, se mudam em "ocupados" ou caem. Por outro lado, há tilintares enganosos, que são fraquinhos, mas que resultam em belas comunicações. Há "trins-trins" eufóricos chamando num doce trinado, que podem ficar soando para sempre, sem rumo, desembocando num mistério infinito, que te levam à melancolia e dor.
Há o telefone surdo-mudo, que não reage a nada, mas de onde pode jorrar um ronco bruto e grosso, como uma descarga da latrina. Há os telefones-delatores -descobri outro dia- quando um vizinho constrangido me avisou que minhas conversas perversas estavam saindo pelo alto-falante de seu monitor de escutar bebê. E, quando tudo parece bem, sempre há o perigo da brusca interrupção da linha, no clímax de um bom diálogo: "Claro.. meu anjo... diz que me ama ainda..." Negro silêncio. Ou: "Sim, doutor... podemos então fechar o negócio?" Vazio sideral.
Outra lição é a ciência dos "barulhinhos". É necessário aprender seu alfabeto. Por exemplo, há um indescritível ruído que mostra uma tendência "positiva" para a ligação. É um prenúncio de que o sinal virá e que, se vier, a ligação se completará.
Anime-se, mas não peque por excesso de otimismo, como se estivesse em Nova York, pois você pode ser vítima de um barulhinho "punitivo". São estampidos pavorosos que podem lhe furar o tímpano. São lembretes de que você está num subpaís, a exigir humildade.
Agora com a privatização, surgiram novos grilos: há os superegos falantes. Um homem com voz de pai severo te interrompe: "Atenção, telefone ocupado!" (Não acredite, pois ele pode estar errado). Há também a voz de uma senhora, com audível desdém: "Não foi possível completar sua ligação... Verifique o número discado..." Ou seja, você é culpado não a Anatel. Mas há pior. Os escandalosos anúncios de TV, todos paquerando nossa preferência, como prostitutas competitivas: "Venha, gostosão!" Esses espaventosos anúncios me passaram a certeza de que os telefones não são para nosso bem; nós é que temos de servi-los. O perigo é nós acostumarmos com esses serviços medíocres. Portanto, tenha fé, leitor, apesar de sabermos que, no Brasil, penico de barro dá ferrugem sim...


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