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ARNALDO JABOR
O telefone é uma janela aberta para o infinito
Eu sou do tempo em que as geladeiras eram brancas e os telefones
eram pretos, escreveu Rubem Braga. Desde então, há o mistério: por
que os telefones sempre funcionaram mal neste país? Já escrevi sobre isso quatro anos atrás. Veio a
privatização das teles, veio o escândalo das "fitas", veio a carequinha do Carlos Jereissati, veio a
Telemar, veio o colapso das discagens DDD e, passada a onda, concluo: continua a saga das discagens fracassadas e, no plano interestadual, pioraram os serviços.
Ligar para São Paulo é uma
aventura incerta. Do Rio, 21 e 31
não competem -se igualam em
discagens fracassadas. Ligação internacional são de oito a dez tentativas. Telefonar ainda é uma janela aberta para o infinito, dizia
Nelson Rodrigues. Por isso, devo
repetir a lista de meus conselhos
aos discadores de hoje, eu, emérito
sofredor desde os remotos tempos
do "trote", quando se gastava
uma linha para perguntar: "Penico de barro dá ferrugem?"
Saiba, antes de tudo, que as linhas telefônicas têm um comportamento humano (e neurótico).
Para domá-las é preciso compreensão e carinho, sendo necessária, às vezes, um pouco de energia, sem exageros que possam levar até a destruição do aparelho,
aos gritos de "não aguento mais,
canalhas!" Eu mesmo já esmigalhei um "sem-fio" branco, novinho, sapateando em cima dele como uma bailarina espanhola. Foi
das mais deliciosas vinganças de
minha vida...
No Rio, as linhas são como mulheres difíceis; nunca "dão" de primeira. São coquetes, histéricas.
Você liga, não "completa", e aí começa a sofrer como diante de uma
Carmen.
E existe um fenômeno que eu
batizei de "processo de impregnação progressiva". É o seguinte: só
se consegue a ligação na terceira
tentativa. Por que três vezes? Ninguém sabe. Mas é o processo da
"impregnação". É como um espermatozóide fecundando um óvulo,
uma idéia se formando no sistema nervoso. Tudo depende de seu
jeitinho, de seu afeto ao ligar. A
primeira tentativa é, digamos, um
"flirt". A segunda, uma quebra de
gelo na relação homem-máquina.
Só na terceira discada se dará o
contato. Se bem que, mesmo completada a ligação, isso não garante que atingirás o contato com teu
amigo, teu amante ou teu "miché", oh admirável estrangeiro!
Provavelmente, será "engano".
Pode-se ligar para a própria mãe,
e atender um crioulo em Bonsucesso, não por um deslize dos dedos, mas por enigmas elétricos no
coração das trevas.
Há telefones sádicos e telefones
masoquistas. Uns gostam de bater, outros de ser espancados. A
maioria, como na vida, é de sádicos. Portanto, a melhor maneira é
não deixá-los perceber que você
sofre, pois isso os estimularia a
mais violências. Telefones detestam gente deprimida que já chega
querendo comprovar seu infortúnio. Chegue ao seu telefone com
otimismo e esperança. Finja que
não desconfia dele, afague-o jucundo e animado, disque com alegres dedinhos, se bem que isso não
seja garantia de sucesso, porque o
telefone saca mentiras e adulações e pode lhe punir com uma linha cruzada, esse rico universo
para o estudo psicossocial do país.
Na linha cruzadas, nunca se flagra o grande crime, o grande negócio, o grande adultério; só o rosto derrubado da cidade, com dois
tons de vozes: a lamentação e o
rancor. É sempre alguém clamando por justiça ou amor: a desquitada sem pensão, a viúva sem afeto, pequenos serviçais injustiçados, aposentados sem rumo, veados sem bofes, tudo numa rede sinistra de solidão e desencontros.
Pelas linhas cruzadas, vemos as
almas destruídas, as vítimas de
uma miséria existencial escondida nos "conjugados", barracos e
botecos. Há tilintares variegados
para o seu sofrimento.
Há os tilintares gagos, que se interrompem sem motivo. Há belos
tilintares, mas que prenunciam
fracasso (só "experts" como eu o
percebem...). Esses começam eufóricos e limpos e, súbito, se mudam
em "ocupados" ou caem. Por outro lado, há tilintares enganosos,
que são fraquinhos, mas que resultam em belas comunicações.
Há "trins-trins" eufóricos chamando num doce trinado, que podem ficar soando para sempre,
sem rumo, desembocando num
mistério infinito, que te levam à
melancolia e dor.
Há o telefone surdo-mudo, que
não reage a nada, mas de onde
pode jorrar um ronco bruto e
grosso, como uma descarga da latrina. Há os telefones-delatores
-descobri outro dia- quando
um vizinho constrangido me avisou que minhas conversas perversas estavam saindo pelo alto-falante de seu monitor de escutar
bebê. E, quando tudo parece bem,
sempre há o perigo da brusca interrupção da linha, no clímax de
um bom diálogo: "Claro.. meu anjo... diz que me ama ainda..." Negro silêncio. Ou: "Sim, doutor...
podemos então fechar o negócio?"
Vazio sideral.
Outra lição é a ciência dos "barulhinhos". É necessário aprender
seu alfabeto. Por exemplo, há um
indescritível ruído que mostra
uma tendência "positiva" para a
ligação. É um prenúncio de que o
sinal virá e que, se vier, a ligação
se completará.
Anime-se, mas não peque por
excesso de otimismo, como se estivesse em Nova York, pois você pode ser vítima de um barulhinho
"punitivo". São estampidos pavorosos que podem lhe furar o tímpano. São lembretes de que você
está num subpaís, a exigir humildade.
Agora com a privatização, surgiram novos grilos: há os superegos falantes. Um homem com voz
de pai severo te interrompe:
"Atenção, telefone ocupado!"
(Não acredite, pois ele pode estar
errado). Há também a voz de
uma senhora, com audível desdém: "Não foi possível completar
sua ligação... Verifique o número
discado..." Ou seja, você é culpado
não a Anatel. Mas há pior. Os escandalosos anúncios de TV, todos
paquerando nossa preferência,
como prostitutas competitivas:
"Venha, gostosão!" Esses espaventosos anúncios me passaram a
certeza de que os telefones não são
para nosso bem; nós é que temos
de servi-los. O perigo é nós acostumarmos com esses serviços medíocres. Portanto, tenha fé, leitor,
apesar de sabermos que, no Brasil,
penico de barro dá ferrugem sim...
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