|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"A PAIXÃO SEGUNDO MARTINS"
A inacreditável alegoria brasileira de João Carlos Martins
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
As quatro primeiras cenas resumem os mil e um caminhos que se cruzam sugestiva e
problematicamente no filme. Na
primeira, o pianista João Carlos
Martins aparece na sala de seu
apartamento em São Paulo, tocando a "Chaconne" de Bach
(1685-1750), na transcrição de Busoni, só para a mão esquerda. A
cena seguinte se passa num hospital, em 2002, onde o pianista
submete-se a tratamento para recuperação dos movimentos da
mão. A terceira é o vídeo histórico
de um concerto de Martins com a
Filarmônica de Los Angeles regida por Zubin Mehta, em 1970. E a
quarta mostra o pianista sexagenário trocando passes de cabeça
com Pelé, na sacada do apartamento.
A trama de música, doença, glória e celebridade se multiplica ao
longo de "A Paixão Segundo Martins", documentário franco-alemão da diretora Irene Langemann, que estréia hoje em cinemas de São Paulo e Rio. É uma
história do pianista que vai além
da paixão pela música (e pela música de Bach em especial), não só
no sentido de que a própria música o leva a superações incríveis,
mas também porque outra narrativa se escuta por trás do que está
na tela.
O fato de uma pedrinha ter cortado seu braço em 1966, enquanto
jogava bola no Central Park, em
Nova York, lesando o nervo cubital, soa característico nesse roteiro
de inverosimilhanças (verdadeiras), que vão compondo fatidicamente uma tapeçaria de vida. Estava então no auge da fama, aos 26
anos de idade. E o acidente parece
mais significativo ainda quando
se olha o forro do tapete, uma involuntária alegoria brasileira.
Que um pianista clássico seja incapacitado pela paixão do futebol
faria pensar em Machado de Assis. Que esse mesmo pianista
abandone, então, sua arte e se devote à Bolsa de Valores -em plena era do "milagre brasileiro", nos
anos 70- faz pensar em Rubem
Fonseca. Que o financista retorne
depois aos palcos e se veja forçado
novamente a largar o piano por
problemas na mão, que vire dono
de uma construtora e angariador
de fundos do candidato a governador Paulo Maluf, e que seja processado pela administração desses recursos já nos traz para as
sombras de algum autor ainda
não surgido, capaz de dar conta
do qüiproquó nacional, em que a
mesma figura pode surgir, no fim
da fita, em 2003, interpretando o
hino brasileiro (com a mão esquerda debilitada e apenas o polegar da direita) num comício de 1º
de maio da Força Sindical, apresentado por Paulinho e aplaudido
pela multidão.
As coisas são tão mais ambíguas
porque a sinceridade musical de
Martins fica evidente desde o primeiro instante. Também sua considerável coragem, ao se deixar
filmar em cenas de sofrimento físico excruciante, por exemplo, ou
ao comentar abertamente o caso
Maluf (sem pronunciar este nome, é verdade), ou ao se lamuriar,
em tom doído, pela falta de reconhecimento em seu próprio país.
Mas não é estranho, por outro
lado, que não haja no documentário um único depoimento de alguém que não seja seu parente,
amigo ou associado? Não é constrangedor ver Martins, sem meias
palavras, se comparando a Pelé?
Não faz falta escutar algum artista
ou musicólogo brasileiro? Não seria pelo menos tão importante
quanto mostrar o lutador Eder Jofre (de quem Martins promoveu a
luta em que reconquistou o título
mundial dos pesos leves, em
1973)?
O fato é que "A Paixão Segundo
Martins" faz da história pessoal o
mais importante num filme onde
a música é instrumento de uma
experiência humana incomum. E
essa história é sempre contada da
perspectiva do protagonista. O
que talvez não seja ruim, se se tomar o filme também como mais
um trabalho de interpretação do
pianista (em todos os sentidos da
palavra "interpretação"). Vale dizer que a força sentimental do
conjunto há de desagradar muita
gente, assim como seu Bach. A interpretação dessa interpretação é
uma outra história ainda, em que
se cruzam memórias e atualidades, apaixonantes e repulsivas,
tramando o tapete em frangalhos
do Brasil.
A Paixão Segundo Martins
Direção: Irene Langemann
Produção: Alemanha, 2004
Com: João Carlos Martins
Quando: a partir de hoje nos cines Frei
Caneca Unibanco Arteplex 5 e Cinearte 1
Texto Anterior: Cinema: "Olga" e "Pelé" tentam indicação pelo Brasil ao Oscar estrangeiro Próximo Texto: "Alien vs. Predador": Encontro só se sustenta pelo marketing Índice
|