São Paulo, quinta, 3 de setembro de 1998

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TELEVISÃO

Concurso transforma corpo em mercadoria

Alexandre Campbell/Folha Imagem
Sheila Mello, eleita em concurso para ser a nova loira do É o Tchan


LEON CAKOFF
da Equipe de Articulistas

O desgraçado do motoboy, o das chacinas do parque, o que torturava e matava suas vítimas para, aparentemente, realizar as suas fantasias de sexo anal, encobre com os seus atos mais do que escabrosos uma silenciosa conivência social. Uma hipocrisia generalizada que faz vista grossa e indiferente à transformação da bunda brasileira em mercadoria como no tempo do tráfico negreiro.
Arrasta-se nas vesperais de domingo na Rede Globo, tudo pelos miseráveis pontos a mais de audiência, um concurso de bundas de loiras oxigenadas, para "preencher" a vaga de Carla Perez, outra loira oxigenada cujo único mérito era oferecer o traseiro aos primeiros planos das câmeras e chacoalhar o imaginário coletivo com o seu rebolado.
A bunda de Carla Perez já "abortou" um programa que teria no sempre brochante SBT. O mesmo será o provável destino do filme que a abundante ritmista estrela, uma produção musical de sórdido oportunismo que nada tem a ver com o renascimento do cinema brasileiro.
A bunda brasileira é a última fronteira da nossa hipócrita e secular repressão sexual. Num horário de vaivém das crianças em idade escolar, o telejornal da hora do almoço, outra vez na Globo, antecipava os trechos da confissão do motoboy em que ele confirmava haver praticado sexo anal com as suas vítimas. De novo, à tarde, tudo bem! O mesmo detalhe constrangedor acabou sendo censurado no "Jornal Nacional".
Em entrevista à Folha em 1983, o cineasta inglês Alex Cox, fez uma brilhante observação sobre a hipócrita posição dos apresentadores de telejornais dos EUA, que, segundo ele, noticiavam a prisão de traficantes e viciados em cocaína, quando eles poderiam estar listados como consumidores pelos "drug dealers" presos.
Quinze anos de salto no passado é um cenário de terror moralista, com censura federal e militar em nome da nossa moral e os nossos bons costumes, impossível de se imaginar com a oferta que se tem hoje, livre e descabida, de literatura e vídeos pornográficos em bancas de jornal e videolocadoras.
As pequenas videolocadoras encontraram como saída para sua sobrevivência a oferta crescente de fitas pornô -única forma de enfrentar a migração da sua clientela para a TV paga. Suas distribuidoras também garantiram uma sobrevida "traficando" fitas pornô.
Para um consumo cada vez mais "exigente" e excitado com o novo consumo amoral, a fantasia está no limite da overdose. Uma publicação mensal dirigida às locadoras anuncia na capa da sua edição de agosto o lançamento do mês. Título: "Estupro e Prazer". Todos as capas dos lançamentos listados na revista prometem cenas de sexo anal.
Para o refúgio dos onanistas ou para viciados em sexo ou outra droga qualquer, os limites parecem ser os mesmos: a atitude de fingimento, da indiferença de quem pensa jamais ser afetado.
O caso do motoboy é o alerta para a disfunção ao estímulo público, como o do cigarro, do álcool, do sexo violento e da cocaína. O sexo permissivo, como em todos os vícios, rompeu as últimas barreiras da moral. A jornaleira octagenária da banca da esquina vende vídeos pornográficos com títulos escabrosos. Sua sobrevivência é mais um elo da cadeia que alimenta uma fantasia hoje um tanto estranha sem a sombra do pecado ou da censura. E a hipocrisia só não tolera quando os vícios privados tornam-se públicos e deixam rastros mortais.
Enquanto não se chega a esses estágios, viva as tardes de domingo e a violência velada das taras e das frustrações. E viva, como sempre, a inocência dos traficantes.



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