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São Paulo, sexta-feira, 03 de outubro de 2003

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ANÁLISE

Espaço comemora data com a diversidade

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O brasileiro típico é um mito -como é mítica a América Latina. Quem vê "Os Sertões - O Homem", no Oficina, não sai ignorando isso. Sai feliz de saber o quão diferentes nós somos uns dos outros e o quão ricos a diferença nos torna -ela é o nosso tesouro comum.
O espetáculo retoma a questão da identidade, dizendo-nos quem somos nós que não cessamos de nos misturar. Só falamos a mesma língua, fazendo-a variar interminavelmente, deixando que ela se contamine pelas outras línguas. Gilberto Freyre, que fundou a sua sociologia na miscigenação, e Mario de Andrade, que bendizia a contribuição milionária de todos os erros, teriam gostado.
Com a primeira parte, "A Terra", o Oficina fundou o TBI, o Teatro Brasileiro da Inclusão, introduzindo as crianças do Bexiga na peça -crianças sem casa, de casas sem número, dos cortiços-, dando voz, por meio delas, a Euclydes da Cunha, ensinando-lhes a grande língua do escritor e a história da nossa formação, além de indicar o caminho pacificador da arte.
O resultado desta experiência iniciática é o re-nascimento do Oficina em "O Homem" para um trabalho de ator surpreendente. Com as crianças, os mais velhos também se formaram.
Além do já consagrado Marcelo Drummond, no papel de Euclydes da Cunha, de Ricardo Bittencourt, de Fransérgio Araújo e de Aury Porto, há vários outros atores e atrizes cujo desempenho arrebata.
Isto ocorre porque são capazes de encarnar com convicção o próprio personagem, de se comunicar com o espectador e de se desnudar em público, como só o ator se desnuda. Por saber que a palavra vergonha não faz sentido no teatro. Que, para ser bom, o ator precisa ser avergonhado. Ou melhor, se tornar avergonhado, como o artista se torna inocente.
Noutras palavras, o bom ator, como o bom artista, é aquele que recuperou a inocência perdida, exercitando-se no seu ofício. E a contribuição das crianças do Bexiga foi decisiva para que os mais velhos se aprimorassem. Prova de que a inclusão é o melhor dos recursos.
Como a terra é o maior dos bens. Para o sertanejo e para os sem-terra. Para o Oficina, a cuja história o espetáculo continuamente nos remete, convocando a tomar parte no drama de um espaço cultural vital ameaçado de extinção desde que surgiu.
"O Homem" mostra mais ainda do que "A Terra" que Canudos é aqui, os sem-terra estão no campo mas também na rua Jaceguay, no Bexiga, onde Zé Celso resiste e comemora com os seus amigos de ouro dez anos de abertura do teatro no dia 3 de outubro. Do Uzyna Uzona, transformado numa usina de formação e de paz. Quem não viu a peça ainda pode ir e comemorar.


Betty Milan é escritora, psicanalista e autora de "A Paixão de Lia" e "O Papagaio e o Doutor", entre outros

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