São Paulo, sábado, 3 de outubro de 1998

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Eleições, o lado humano -Maluf, Covas

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Voto eletrônico é rápido, fácil de contar, menos vulnerável à fraude. Já a campanha eleitoral eletrônica está longe de significar avanços.
Acabaram os comícios, já não existem políticos "mitingueiros" (de "meeting", encontro) capazes de empolgar multidões. Tudo na base do retrato três por quatro.
Marqueteiros e maquiladores, VTs (vídeos) e TPs (teleprompter, câmera que permite a leitura do texto) mecanizaram o contato entre eleitor e candidatos.
Locutores dos comerciais falam por eles, e o horário eleitoral, que de gratuito não tem nada, converteu-se numa caricatura de democracia.
Tudo é artifício, inclusive os verbos usados na febre das sondagens de opinião. A noção de pleito está sendo substituída pela sensação de corrida, até os debates são aferidos como páreos nos hipódromos.
Carreatas (neologismo que os apressadinhos da Academia não incluíram no novo repertório) converteram-se na janela humanizadora do processo eleitoral.
Mesmo assim, porque não podem infringir o novo código de trânsito, os cortejos motorizados exigem que o eleitor converta-se em maratonista para aproximar-se do eleito.
Apesar de tantos partidos e facções, no nível da rua, não é a plataforma ou o slogan do postulante que conquista o cidadão. É a sua pessoa. A palavrinha que diz, o gesto que faz, um jeito, olhar, sorriso contam mais do que promessas, retórica, furor.
Nas universidades, política é ciência, mas no plano cotidiano -o que vale- política continua sendo um intercâmbio de afinidades, empatias.
Jornalistas são, mais uma vez, os privilegiados, porque podem aproximar-se, sentir e avaliar os protagonistas. Conheço pessoalmente um monte deles, em vários estados, tanto nas disputas majoritárias como legislativas, por força da idade -deles e minha.
Quando era prefeito de Porto Alegre -e o mais jovem do Brasil-, Leonel Brizola marcou uma entrevista às 6h da gelada manhã de julho, disse que era a única hora disponível. Não apareceu.
Mais tarde foi buscar-me no hotel para almoçarmos, desfilando comigo de braço dado pela rua da Praia. No início dos anos 50 isso acontecia.
Miguel Arraes, governador de Pernambuco, foi ao velho prédio do "Jornal do Brasil" na avenida Rio Branco para falar sobre reforma agrária, na solene reunião dos editorialistas.
Veio sozinho, sem gravata, tênis branco, e, embora as Ligas Camponesas fossem tabu, conquistou a todos com a voz rouca e mansa.
Num almoço nesta Folha, Cláudio Abramo apresentou- me a Fernando Henrique Cardoso, que retornava do exílio. O professor foi logo convocando: "Temos muita coisa para falar". Dias depois telefonava do Cebrap para marcar um almoço.
Não conheço Lula pessoalmente, mesmo assim, quando a febre denuncista tentou colocá- lo na vala comum, surpreendi os colegas, afirmando que é um cidadão acima de qualquer suspeita. Justamente porque a sua figura passa-me essa convicção.
Desempregado, colaborando apenas no "Pasquim", estava às voltas com a biografia de Stefan Zweig quando telefona o prefeito Jaime Lerner para sugerir que o lançamento fosse em Curitiba. Acreditava num livro que não existia.
César Maia, sempre criativo: pinçou num texto da revista "Imprensa" a palavra factóide e, não obstante a atribuição a Norman Mailer, nunca deixou de mencionar-me como fonte. Generoso, mas injusto com o romancista norte-americano.
Com Paulo Maluf tudo acontece com os ingredientes característicos de Paulo Maluf, não há espaço para os imponderáveis das relações humanas.
Conta apenas o seu projeto, as pessoas existem na medida em que podem servi-lo. Pitta que o diga.
Esta Folha recém-começara a página de opinião, e eu, egresso dos bastidores das redações, ainda não afeito à ribalta (embora os articulistas fossem identificados apenas pelas iniciais), recebi na sucursal do Rio a visita inesperada do ex- prefeito de São Paulo.
Arrastou-me a um restaurante, queria que eu o conhecesse melhor. Para meu espanto, começou a pontificar sobre abertura política, democracia, direitos humanos, liberalismo, cultura.
Não acreditei numa palavra, porém, por dever do ofício, pedi a um repórter que o entrevistasse. Maluf, malandro, recusou: claro, só lhe interessava minha assinatura no seu "diktat". Assumir, entre aspas, nunca.
Com Mário Covas foi engraçado: início dos anos 80, acabara de mudar-me para São Paulo, trabalhava na Abril, na área das revistas mensais, encontro na rua um ex-companheiro da Folha, assessor do novo prefeito, Mário Covas.
Comentei que São Paulo não poderia converter-se num centro nacional de cultura se o Teatro Municipal continuasse fechado e, o pior, as obras de restauração sequer iniciadas.
Episódio encerrado, pensei. Dias depois telefonam do gabinete do prefeito: o próprio queria falar comigo.
O assessor contara as minhas observações sobre a falta de um grande teatro público e, durante 15 minutos, mais engenheiro do que político, Covas explicou que a casa de espetáculos não poderia funcionar porque corria o risco de desabar, as obras não podiam ser anunciadas porque os estudos não estavam terminados.
Perguntei por que não dizia isso aos jornais. Respondeu que só falaria quando tivesse todas as avaliações e orçamentos na mão. Não gostava de falsas expectativas, prometer e não cumprir. Episódio encerrado, pensei novamente.
Não conhecia Mário Covas: dias depois sou convidado ao gabinete do prefeito (no Ibirapuera) e lá, além dele -a esta altura meu velho amigo-, encontro o secretário de Cultura, Gianfrancesco Guarnieri, quatro ou cinco auxiliares do primeiro e segundo escalões.
Desenrolam plantas, mostram laudos, projetam pareceres, exames de madeira, raios- X, estudos de viabilidade.
No fim, o resto de jornalista que sobrou em mim ousa perguntar: "Quando é que começam as obras ?"
E lá vem Mário Covas, inflexível e ranheta, repetindo o sermão: "Só começo obra com orçamento na mão e dinheiro em caixa. Antes, não. Quero salvar o teatro, não quero fazer teatro". Riu gostosamente. "Esse cara tem prazer no que faz", pensei.
Episódio encerrado, calculei, exausto de tanta obra. No saguão, esperava-me outro capítulo: os repórteres rodearam- me para perguntar o que havia acontecido naquela longa reunião.
Foi a primeira e única entrevista coletiva que jamais concedi.
Porque o prefeito da maior e mais rica cidade do país não queria falar enquanto não tivesse dados concretos e definitivos.
Quando vou ao Municipal, em São Paulo, sinto-me meio dono do pedaço -episódios como esse não se encerram.



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