São Paulo, Quarta-feira, 03 de Novembro de 1999
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LOBÃO E "A VIDA É DOCE"
"Eu estava com muito medo, com pânico desse disco"

da Reportagem Local

A seguir, leia trechos da entrevista em que Lobão apresenta seu novo projeto, "A Vida É Doce", e fala sobre MPB, seus "inimigos" na classe artística e o coma que viveu em março passado.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)

Folha - Como seu novo disco vai ser viabilizado?
Lobão -
Eu havia decidido não aceitar o convite de fazer um disco ao vivo e acústico pela Som Livre ou pela MTV. Estava contando com as gravadoras independentes, mas todas queriam essa mesma coisa. Todos ao redor queriam, até minha psicóloga. Diziam que tenho rejeição pelo sucesso. E me submeti a uma coisa que geralmente não faço: comecei a ficar muito deprimido. Não queria fazer, não queria inviabilizar minha trilogia. Aí abri o I-Ching (ri), estava escrito "morder". Comecei a chutar o pau da barraca, a não ter pruridos, a atacar. Mesmo que parte da imprensa fizesse uma caricatura de mim, eu ia pela primeira vez capitalizar essa caricatura. Aí houve a proposta da editora MID, e tudo começou a acontecer.

Folha - Propostas recusadas da Globo, MTV e Abril denotam um artista que foge do sistema, e não que é rejeitado por ele, como você tem sugerido.
Lobão -
As Lojas Americanas queriam consignar 100 mil cópias do disco com exclusividade, por 15 dias. Queriam desmembrar, colocar dez sucessos, disseram que queriam me ajudar. Respondi que não estou aceitando filantropia, que tenho um bom negócio. A Sony queria ouvir esse trabalho, nem deixei. O Mundo Mix queria, barrei. Eu faria se o selo não tivesse contrato com a Sony.
Tenho medo de ser cooptado e ser trabalhado da forma indigente que sempre fui, de ser colocado na geladeira como já fui. Não é que eu esnobe, mas sinto as coisas diferentes. Antes era frango, dentadura, reeleição, todo mundo achando que o país estava dando certo. Agora neguinho está querendo porrada. Resolvi entrar com tudo, trair minha classe, que está traindo todo mundo.
Fui chamado para participar de um tributo ao Tim Maia no canal Multishow, fui só para criar constrangimento. Fiz um discurso antes de cantar, que evidentemente foi retirado do programa. Era mais ou menos assim:
"Eu quero pedir desculpas por uma parte da minha classe que, vergonhosa e submissamente, foi conivente com a ABPD, que é uma máfia, de que a Som Livre (gravadora da Globo, também vinculada ao Multishow) faz parte. Tim Maia ficou dez anos sem poder aparecer na Globo e agora está aqui na xepa. Então lá vai: senhor Caetano Veloso, senhor Milton Nascimento, senhor Chico Buarque, Herbert Vianna, que fazem propaganda contra pirataria para a ABPD, vocês são todos uns covardes, uns entreguistas. Vocês têm que saber que pirataria é oficial, porque não existe disco numerado no Brasil. Vocês estão aí, com cunho de dignidade, inteligência e prestígio intelectual -não são Sandy & Júnior, não é o pagodeiro-, tendo a atitude mais mórbida e mais pusilânime, se associando à ABPD, que é um cancro". Aí toquei. O pessoal fica quieto, mas vibrou.

Folha - Você diz que parte da imprensa o caricatura, mas você próprio não se caricatura, por excesso ou inflexibilidade?
Lobão -
Não. Não disse ao jornal "O Dia" que Maria Bethânia era um aborto da natureza, como publicaram. Falei que existe um paradigma diva, que Bethânia só anda em cima de tapete, que Simone e Gal Costa fazem isso. É um tratamento hierárquico, monárquico, humilhante. Isso é um aborto da natureza.
Meus discursos são uniformes na sua espinha dorsal, mas evoluíram muito. O script vai melhorando, sendo burilado, é como poesia. Tenho burilado meu discurso, assim como os discos.

Folha - Caetano Veloso está certo quando sugere que você tem falado mais que produzido?
Lobão -
Se acho que pensar é um ato perigoso e que a existência é uma forma de arte, estou completamente inserido no contexto. Seria muito acadêmico pensar que só estou fazendo arte quando mostro um portfolio, um CD. Duvido que Caetano tenha parado para ouvir o trabalho dele. Se ele vir 10% do que ele ainda não viu, vai ter outra percepção. Não vejo muita gente fazendo parecido com o que faço, muito menos ele.
Como posso me expressar se existe tanta pressão, tanta opressão, se não conto com ninguém? Pô, Caetano quer que eu fique calado, levando na bunda o tempo todo, como todo mundo está levando? Eu não tenho nenhuma Mercedes na porta, nem quero.

Folha - Mas você tem falado mais que lançado música.
Lobão -
Vamos fazer uma estatística. Na década de 90, qual artista gravou mais discos inéditos que eu? Gravei quatro só de músicas inéditas. E o Caetano? (Foram três.) Não conheço ninguém que tenha feito mais. E eu teria, se tivesse uma trajetória menos conturbada com gravadoras. Qualitativamente fui ousado, me desconstruí todo, dei meu máximo. Não sou daqueles que FHC fala, oposição sem plano de governo. Estou reclamando, mas estou propondo. E vou continuar reclamando. E tenho disco, que inclusive quase não tem reclamação nenhuma, é tranquilo.

Folha - Nele você se despe da agressividade no discurso, no modo de cantar, no instrumental. De onde vem a tranquilidade?
Lobão -
Esse disco tem uma violência delicada. É sardônico, diz verdades duras. Não estou pegando leve. Para dizer a verdade, ele existia até março de uma maneira. Depois eu tive uma crise, entrei em coma. Fiquei 15 dias, aí acordei. Veio a psicóloga dizendo: "Você é alcoólatra, dependente". Falei que não era, não. Prometi que ia ficar um ano sem beber. E me dei uma semana crítica para fazer uma música sóbrio, para mostrar que não era dependente psicológico. Tinha certeza que não era dependente físico, que se não fiquei dependente de heroína não ia ficar de álcool.
Sentei, "tenho que fazer uma música para me livrar desta". Fiz uma muito ridícula, coisa de estandarte de não sei o quê. Odiei, rasguei, não valeu. Peguei guitarra, bateria, fiquei absorto, esqueci a responsabilidade de fazer a música. Ficou pronta a que seria "A Vida É Doce". Fui à psicóloga e falei: "Ha ha, não serei mais alcoólatra, fiz uma puta música!". Fiquei todo emocionado. Aí ela pediu exame de Aids, falei: "Vou morrer de Aids, sei que vou morrer". No dia que ia receber o resultado fiz mais uma música.

Folha - O resultado?
Lobão -
Deu negativo! Deu negativo! Fiquei mais feliz ainda! Zeca Baleiro foi lá em casa, fiz "Mais Uma Vez". Aí fiz um tango, "Pra Onde Você Vai", aí "Tão Menina", várias músicas que acabaram virando um disco. Tinha insônias constantes, ansiedade, mas foi um disco sóbrio. Eu estava com muito medo, com pavor desse disco.

Folha - Por que tanto medo?
Lobão -
Cheguei a uma conclusão: para ter coragem você tem que ter noção do perigo. Precisa sentir medo para ser corajoso, senão você é um inconsequente. Não tenho medo da morte, mas da opressão, da solidão. De estar sozinho e saber que se eu não der certo não tenho a quem recorrer. Medo do exílio. Nem é da solidão, que dela eu gosto muito. Mas o exílio é a impossibilidade de se comunicar, de se pertencer.

Folha - A experiência do coma é criativa?
Lobão -
Não sei, acho que é morte de neurônio, né? Isso aconteceu várias vezes, tenho tentativas de suicídio, de acordar, "tô no céu ou em casa?" e sair acelerado. Sou um cara de muita energia. Dessa vez eu tinha muitos motivos, porque estava gostando do que estava fazendo. Posso estar sendo muito ridículo, mas se o cara olhar para a minha cara não vai dizer que estou ruim. Agora estou me sentindo à vontade com o que estou falando, com o meio em que estou fazendo. Esse é o momento mais histórico da minha história, nunca fiz nada tão importante.
Não sei se esse disco é rock, bossa nova... Isso é maravilhoso. Ele é gago. Fico feliz de ver o equilíbrio que ele tem. Simplesmente quero constranger o mercadão, criar um precedente, uma rachadura. A indústria fonográfica é jabá, falta de numeração, opressão. Há um contexto histórico no descontentamento com o governo. O governo é Caetano, ACM, axé music. São paradigmas. Por outro lado aparece a Internet, crescendo em projeção geométrica.

Folha - A "metralhadora giratória" do Lobão serviu para ocultar um sujeito acuado ou ressentido? Você desenvolveu um marketing da rebeldia?
Lobão -
Era tenso, antes de mais nada. O Lobão "irado" é também pragmático de certa maneira. O que me deixava tenso é que o habitat de produtor, indústria, gravadora é muito inverdadeiro. Costumo dizer que estou desenvolvendo o marketing do fracasso. Saliento em meus shows como a maioria das minhas obras é de um fracasso retumbante e, em seguida, executo uma das minhas canções prediletas, mostrando que o constrangimento de ninguém saber da existência dela não tem nada a ver com sua qualidade e sim com a inépcia do organismo que cuidou daquele trabalho de forma tão indigente e estúpida.

Folha - Você tem mania de perseguição?
Lobão -
Olha, faço análise, terapia. Já desculpei o Herbert Vianna duas ou três vezes, mas depois de 15 anos o cara continua a fazer a mesma coisa, continua me copiando. Não acho ético. Fiz "Cena de Cinema", Herbert fez "Cinema Mudo". Fiz "Me Chama", ele fez "Me Liga". Fora as músicas que ele "lalou", roubou, copiou.

Folha - Não é neurótico ver tanta semelhança com você em tudo que ele faz?
Lobão -
Mas eu mostrava para ele antes! "O Rock Errou" (86) ele ouviu antes de sair, demorou para sair. Falo "a favela é a nova senzala" em "Revanche", ele vem antes com "Alagados"! Gravei um dueto com Elza Soares, ele a chamou para gravar. Não deixei. Tenho certeza absoluta que não é mania de perseguição. Eu tenho vergonha. Se ele fizesse alguma coisa um pouco admirável, até me sentiria lisonjeado, mas acho ele perfeitamente medíocre. Canta que "estão leiloando a nação" e depois faz anúncio da Telemar, que é um escândalo notório. Rita Lee fez com a Telefônica, mas ao menos se indigna com os rodeios, não canta "Que País É Este?".

Folha - Você tem inveja criativa de alguém na sua geração?
Lobão -
Sinceramente... Achava o Cazuza muito bom, achava Renato Russo ótimo. Quando Júlio Barroso morreu, achei que nossa geração perdeu 50% da força. Como guitarrista, Edgard Scandurra é uma figura singular, o único mito dessa geração. Mas olhando para um lado e para outro, só consigo enxergar Caetano, Chico... Da minha estatura, só pessoas mais velhas, ou talvez mais novas. Da minha geração, acho Arnaldo Antunes um bom poeta, mas é decepcionante, um bunda mole. Fui a um show dele, falei: "Pô, vamos mexer!", ele: "Nossa geração é ótima, nós temos maravilhosas pessoas, por favor pare com isso", me deu um break. É muita repressão cultural, somos um monte de pulgas amestradas.


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