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LOBÃO E "A VIDA É DOCE"
"Eu estava com muito medo, com pânico desse disco"
da Reportagem Local
A seguir, leia trechos da entrevista em que Lobão apresenta seu
novo projeto, "A Vida É Doce", e
fala sobre MPB, seus "inimigos"
na classe artística e o coma que viveu em março passado.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)
Folha - Como seu novo disco
vai ser viabilizado?
Lobão - Eu havia decidido não
aceitar o convite de fazer um disco ao vivo e acústico pela Som Livre ou pela MTV. Estava contando com as gravadoras independentes, mas todas queriam essa
mesma coisa. Todos ao redor
queriam, até minha psicóloga. Diziam que tenho rejeição pelo sucesso. E me submeti a uma coisa
que geralmente não faço: comecei
a ficar muito deprimido. Não
queria fazer, não queria inviabilizar minha trilogia. Aí abri o I-Ching (ri), estava escrito "morder". Comecei a chutar o pau da
barraca, a não ter pruridos, a atacar. Mesmo que parte da imprensa fizesse uma caricatura de mim,
eu ia pela primeira vez capitalizar
essa caricatura. Aí houve a proposta da editora MID, e tudo começou a acontecer.
Folha - Propostas recusadas
da Globo, MTV e Abril denotam
um artista que foge do sistema,
e não que é rejeitado por ele,
como você tem sugerido.
Lobão - As Lojas Americanas
queriam consignar 100 mil cópias
do disco com exclusividade, por
15 dias. Queriam desmembrar,
colocar dez sucessos, disseram
que queriam me ajudar. Respondi
que não estou aceitando filantropia, que tenho um bom negócio.
A Sony queria ouvir esse trabalho,
nem deixei. O Mundo Mix queria,
barrei. Eu faria se o selo não tivesse contrato com a Sony.
Tenho medo de ser cooptado e
ser trabalhado da forma indigente
que sempre fui, de ser colocado
na geladeira como já fui. Não é
que eu esnobe, mas sinto as coisas
diferentes. Antes era frango, dentadura, reeleição, todo mundo
achando que o país estava dando
certo. Agora neguinho está querendo porrada. Resolvi entrar
com tudo, trair minha classe, que
está traindo todo mundo.
Fui chamado para participar de
um tributo ao Tim Maia no canal
Multishow, fui só para criar constrangimento. Fiz um discurso antes de cantar, que evidentemente
foi retirado do programa. Era
mais ou menos assim:
"Eu quero pedir desculpas por
uma parte da minha classe que,
vergonhosa e submissamente, foi
conivente com a ABPD, que é
uma máfia, de que a Som Livre
(gravadora da Globo, também
vinculada ao Multishow) faz parte. Tim Maia ficou dez anos sem
poder aparecer na Globo e agora
está aqui na xepa. Então lá vai: senhor Caetano Veloso, senhor Milton Nascimento, senhor Chico
Buarque, Herbert Vianna, que fazem propaganda contra pirataria
para a ABPD, vocês são todos uns
covardes, uns entreguistas. Vocês
têm que saber que pirataria é oficial, porque não existe disco numerado no Brasil. Vocês estão aí,
com cunho de dignidade, inteligência e prestígio intelectual
-não são Sandy & Júnior, não é
o pagodeiro-, tendo a atitude
mais mórbida e mais pusilânime,
se associando à ABPD, que é um
cancro". Aí toquei. O pessoal fica
quieto, mas vibrou.
Folha - Você diz que parte da
imprensa o caricatura, mas você
próprio não se caricatura, por
excesso ou inflexibilidade?
Lobão - Não. Não disse ao jornal "O Dia" que Maria Bethânia
era um aborto da natureza, como
publicaram. Falei que existe um
paradigma diva, que Bethânia só
anda em cima de tapete, que Simone e Gal Costa fazem isso. É
um tratamento hierárquico, monárquico, humilhante. Isso é um
aborto da natureza.
Meus discursos são uniformes
na sua espinha dorsal, mas evoluíram muito. O script vai melhorando, sendo burilado, é como
poesia. Tenho burilado meu discurso, assim como os discos.
Folha - Caetano Veloso está
certo quando sugere que você
tem falado mais que produzido?
Lobão - Se acho que pensar é
um ato perigoso e que a existência
é uma forma de arte, estou completamente inserido no contexto.
Seria muito acadêmico pensar
que só estou fazendo arte quando
mostro um portfolio, um CD. Duvido que Caetano tenha parado
para ouvir o trabalho dele. Se ele
vir 10% do que ele ainda não viu,
vai ter outra percepção. Não vejo
muita gente fazendo parecido
com o que faço, muito menos ele.
Como posso me expressar se
existe tanta pressão, tanta opressão, se não conto com ninguém?
Pô, Caetano quer que eu fique calado, levando na bunda o tempo
todo, como todo mundo está levando? Eu não tenho nenhuma
Mercedes na porta, nem quero.
Folha - Mas você tem falado
mais que lançado música.
Lobão - Vamos fazer uma estatística. Na década de 90, qual artista gravou mais discos inéditos
que eu? Gravei quatro só de músicas inéditas. E o Caetano? (Foram
três.) Não conheço ninguém que
tenha feito mais. E eu teria, se tivesse uma trajetória menos conturbada com gravadoras. Qualitativamente fui ousado, me desconstruí todo, dei meu máximo.
Não sou daqueles que FHC fala,
oposição sem plano de governo.
Estou reclamando, mas estou
propondo. E vou continuar reclamando. E tenho disco, que inclusive quase não tem reclamação
nenhuma, é tranquilo.
Folha - Nele você se despe da
agressividade no discurso, no
modo de cantar, no instrumental. De onde vem a tranquilidade?
Lobão - Esse disco tem uma violência delicada. É sardônico, diz
verdades duras. Não estou pegando leve. Para dizer a verdade, ele
existia até março de uma maneira.
Depois eu tive uma crise, entrei
em coma. Fiquei 15 dias, aí acordei. Veio a psicóloga dizendo:
"Você é alcoólatra, dependente".
Falei que não era, não. Prometi
que ia ficar um ano sem beber. E
me dei uma semana crítica para
fazer uma música sóbrio, para
mostrar que não era dependente
psicológico. Tinha certeza que
não era dependente físico, que se
não fiquei dependente de heroína
não ia ficar de álcool.
Sentei, "tenho que fazer uma
música para me livrar desta". Fiz
uma muito ridícula, coisa de estandarte de não sei o quê. Odiei,
rasguei, não valeu. Peguei guitarra, bateria, fiquei absorto, esqueci
a responsabilidade de fazer a música. Ficou pronta a que seria "A
Vida É Doce". Fui à psicóloga e falei: "Ha ha, não serei mais alcoólatra, fiz uma puta música!". Fiquei
todo emocionado. Aí ela pediu
exame de Aids, falei: "Vou morrer
de Aids, sei que vou morrer". No
dia que ia receber o resultado fiz
mais uma música.
Folha - O resultado?
Lobão - Deu negativo! Deu negativo! Fiquei mais feliz ainda! Zeca Baleiro foi lá em casa, fiz "Mais
Uma Vez". Aí fiz um tango, "Pra
Onde Você Vai", aí "Tão Menina", várias músicas que acabaram
virando um disco. Tinha insônias
constantes, ansiedade, mas foi um
disco sóbrio. Eu estava com muito
medo, com pavor desse disco.
Folha - Por que tanto medo?
Lobão - Cheguei a uma conclusão: para ter coragem você tem
que ter noção do perigo. Precisa
sentir medo para ser corajoso, senão você é um inconsequente.
Não tenho medo da morte, mas
da opressão, da solidão. De estar
sozinho e saber que se eu não der
certo não tenho a quem recorrer.
Medo do exílio. Nem é da solidão,
que dela eu gosto muito. Mas o
exílio é a impossibilidade de se comunicar, de se pertencer.
Folha - A experiência do coma
é criativa?
Lobão - Não sei, acho que é
morte de neurônio, né? Isso aconteceu várias vezes, tenho tentativas de suicídio, de acordar, "tô no
céu ou em casa?" e sair acelerado.
Sou um cara de muita energia.
Dessa vez eu tinha muitos motivos, porque estava gostando do
que estava fazendo. Posso estar
sendo muito ridículo, mas se o cara olhar para a minha cara não vai
dizer que estou ruim. Agora estou
me sentindo à vontade com o que
estou falando, com o meio em que
estou fazendo. Esse é o momento
mais histórico da minha história,
nunca fiz nada tão importante.
Não sei se esse disco é rock, bossa nova... Isso é maravilhoso. Ele é
gago. Fico feliz de ver o equilíbrio
que ele tem. Simplesmente quero
constranger o mercadão, criar um
precedente, uma rachadura. A indústria fonográfica é jabá, falta de
numeração, opressão. Há um
contexto histórico no descontentamento com o governo. O governo é Caetano, ACM, axé music.
São paradigmas. Por outro lado
aparece a Internet, crescendo em
projeção geométrica.
Folha - A "metralhadora giratória" do Lobão serviu para
ocultar um sujeito acuado ou
ressentido? Você desenvolveu
um marketing da rebeldia?
Lobão - Era tenso, antes de mais
nada. O Lobão "irado" é também
pragmático de certa maneira. O
que me deixava tenso é que o habitat de produtor, indústria, gravadora é muito inverdadeiro.
Costumo dizer que estou desenvolvendo o marketing do fracasso. Saliento em meus shows como
a maioria das minhas obras é de
um fracasso retumbante e, em seguida, executo uma das minhas
canções prediletas, mostrando
que o constrangimento de ninguém saber da existência dela não
tem nada a ver com sua qualidade
e sim com a inépcia do organismo
que cuidou daquele trabalho de
forma tão indigente e estúpida.
Folha - Você tem mania de
perseguição?
Lobão - Olha, faço análise, terapia. Já desculpei o Herbert Vianna
duas ou três vezes, mas depois de
15 anos o cara continua a fazer a
mesma coisa, continua me copiando. Não acho ético. Fiz "Cena
de Cinema", Herbert fez "Cinema
Mudo". Fiz "Me Chama", ele fez
"Me Liga". Fora as músicas que
ele "lalou", roubou, copiou.
Folha - Não é neurótico ver
tanta semelhança com você em
tudo que ele faz?
Lobão - Mas eu mostrava para
ele antes! "O Rock Errou" (86) ele
ouviu antes de sair, demorou para
sair. Falo "a favela é a nova senzala" em "Revanche", ele vem antes
com "Alagados"! Gravei um dueto com Elza Soares, ele a chamou
para gravar. Não deixei. Tenho
certeza absoluta que não é mania
de perseguição. Eu tenho vergonha. Se ele fizesse alguma coisa
um pouco admirável, até me sentiria lisonjeado, mas acho ele perfeitamente medíocre. Canta que
"estão leiloando a nação" e depois
faz anúncio da Telemar, que é um
escândalo notório. Rita Lee fez
com a Telefônica, mas ao menos
se indigna com os rodeios, não
canta "Que País É Este?".
Folha - Você tem inveja criativa de alguém na sua geração?
Lobão - Sinceramente... Achava
o Cazuza muito bom, achava Renato Russo ótimo. Quando Júlio
Barroso morreu, achei que nossa
geração perdeu 50% da força. Como guitarrista, Edgard Scandurra
é uma figura singular, o único mito dessa geração. Mas olhando
para um lado e para outro, só consigo enxergar Caetano, Chico...
Da minha estatura, só pessoas
mais velhas, ou talvez mais novas.
Da minha geração, acho Arnaldo
Antunes um bom poeta, mas é decepcionante, um bunda mole. Fui
a um show dele, falei: "Pô, vamos
mexer!", ele: "Nossa geração é ótima, nós temos maravilhosas pessoas, por favor pare com isso", me
deu um break. É muita repressão
cultural, somos um monte de pulgas amestradas.
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