São Paulo, segunda, 3 de novembro de 1997.




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CINEMA
Morte de Fuller é como perder o pai

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Há o cineasta que se admira e há o cineasta que se ama. Para os fãs de cinema, Samuel Fuller certamente estava nessa segunda categoria, e sua morte, aos 86 anos, na última sexta-feira, soa como uma catástrofe.
É um pouco como perder o pai ou a mãe. Mesmo que tenham 120 anos, nada nos consola da perda.
O que colocou Fuller nessa posição tão única? Em parte, o fato de nunca ter tido seu talento plenamente reconhecido, de ser uma espécie de pária, de trazer no sangue, nas idéias e imagens esse lado popular, plebeu mesmo, do cinema.
Defender Fuller, bater-se por seus filmes, torná-los inteligíveis era (ainda é) uma causa da cinefilia universal, porque os fãs de cinema sabiam que amar Fuller e compreender o cinema é quase a mesma coisa.
Embora fosse escritor, o cinema de Fuller não devia nada à literatura. Ao contrário, devia tudo ao jornalismo -também um gênero popular, não raro grosseiro, porém imediato. Assim também são os filmes de Fuller. Não estão interessados na arte, mas no assunto, não são feitos para a posteridade, mas para agora, para hoje.
Fuller era um jornalista nato. Não escondia que seu maior sonho era "possuir e dirigir" seu próprio jornal.
Isso não quer dizer que em seus filmes não haja arte. Os longos e complexos planos que costumava utilizar dão bem idéia das dificuldades técnicas que se propunha enfrentar. Mas conferem aos filmes essa fluência típica do texto jornalístico, que precisa acomodar o heterogêneo num espaço único e homogêneo. E, sobretudo, essa sensação de urgência característica do jornalismo.
Dito isso, Fuller era um cineasta de longo alcance. Para começar, um crítico feroz do "hollywoodianismo", que era para ele sinônimo de cinema não adulto.
Exemplo: para Fuller, "Consciências Mortas" (1944), de William Wellman, era o exemplo típico de um filme adulto. Ali, um grupo de fanáticos lincha um homem. E, ao constatar que era inocente, o que fazem? Tomam um trago.
Exemplo contrário: em "Fúria" (1936), de Fritz Lang, ao constatarem que haviam tentado matar um inocente, os linchadores se põem a chorar e pedir desculpas. Para Fuller, fanáticos linchadores não pedem desculpas e choram. Eles simplesmente não aprendem, não têm a dimensão do que fazem. Lang fora hollywoodiano e convencional. Wellman mostrara seres reais.
No entanto, é Fritz Lang a grande referência de Fuller, sua baliza. Estilisticamente, pode-se situar Fuller ao lado dos cineastas com influência expressionista, como Lang e Hitchcock, cuja essência é a manipulação do espectador por meio da imagem. Detalhe não desprezível: Fuller achava Hitchcock mera perfumaria.
Basta ver as intrigas de seus filmes para entender a razão. Em "Eu Matei Jesse James" (1949), filme de estréia, ele conta a história de Bob Ford, o homem que trai Jesse James e mata-o pelas costas para poder casar com o dinheiro da recompensa. Em "O Barão Aventureiro" (1950), o herói é o fulano que se põe a grilar o território inteiro do Arizona.
Em "Paixões que Alucinam" (1963), talvez seu melhor filme, a história é a de um jornalista que entra em um hospício para fazer uma grande reportagem; ganha o prêmio Pullitzer, mas fica catatônico. Em "O Cão Branco" (1982), a trama gira em torno de um cachorro racista, treinado para atacar negros. Etc.
Campo de batalha
Nos mais de 20 filmes, feitos entre os anos 40 e os 80, Fuller sempre escolheu entrar pela porta dos fundos, pelo aspecto mais desimportante e menos óbvio da história. Isso sempre deu a seus filmes um aspecto retorcido, conturbado, turbulento. Pouco otimista, claro, e, em definitivo, nada glamouroso.
Ao definir sua arte, em "Pierrot Le Fou", de Godard, ele afirmará que "o cinema é um campo de batalha". Mas, ao refletir sobre a guerra em "Agonia e Glória" (1980) -sobre sua experiência de soldado durante a Segunda Guerra Mundial-, dirá: não há qualquer heroísmo na guerra, o único heroísmo é sobreviver.
Seus filmes sem heróis, agônicos, têm uma beleza e uma poesia que irrompem na tela levados pela força, consistência e originalidade de seu olhar. Fuller costumava dizer, com toda consciência, que 95% dos filmes existem por motivos puramente comerciais. Os outros 5%, os únicos que contam, existem porque alguém tinha algo a dizer e disse.
Para fazer parte desses heróicos 5%, Samuel Fuller dispensou os grandes orçamentos, as produções feitas com prazos e orçamentos confortáveis. Encarnou um modo de ser do cinema, o mais puro, o menos estetizante. Talvez por isso seja o maior cineasta de uma geração -a do pós-guerra- que virou o cinema americano pelo avesso e teve gigantes como Nicholas Ray, Elia Kazan, Robert Aldrich.
Com Samuel Fuller, o Tio Sam, o cinema perde mais que um cineasta. Vai-se um pouco, talvez muito, de sua juventude, de sua integridade e de sua beleza.



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