São Paulo, sábado, 4 de janeiro de 1997.

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MITOS
Mastroianni encontra Gassmann

Folha Imagem
Vittorio Gassmann e Stefania Sandrelli no filme "Nós que nos Amávamos Tanto"


do "El País"

Em setembro do ano passado, três meses antes de morrer, Marcello Mastroianni se reuniu com outro importante ator italiano, Vittorio Gassmann, no Grand Hotel de Roma.
Juntos, deram uma entrevista de três horas para o fundador do diário romano "La Repubblica", o jornalista Eugenio Scalfari.
Leia abaixo trechos da reportagem. Foi uma das últimas de que Mastroianni participou. O ator morreu no dia 19 de dezembro, em Paris, aos 72 anos.

Eugenio Scalfari - Quando decidiram ser velhos?
Marcello Mastroianni -
Decidir? Isso não se decide, acontece quando a gente menos espera.
Em um determinado momento, você começa a ser chamado de "senhor". E pergunta: "Senhor por quê?". E as pessoas respondem: "É um sinal de respeito". E o que você tem vontade de responder é: "Senhor é a sua mãe".
Então você percebe que algo aconteceu, que alguma coisa mudou. Pode ser alguma parte da engrenagem que já não funciona como antes, talvez seja uma ruga em volta da boca ou no meio da testa.
Talvez uma forma diferente de olhar para as mulheres, uma forma mais suave, menos agressiva.
Vittorio Gassmann - Você percebeu, Marcello, que, depois de ter sido durante anos o mais novo do elenco, de repente, em coisa de seis meses, passa a ser o mais velho?
E é então que compreendemos que, desse momento em diante, será sempre assim. Você passa a ser o mais velho, e os outros o olham com respeito.
Os jovens passam a ter um pouco de compaixão por você, um sentimento um pouco protetor; parece que têm vontade de mandá-lo dormir cedo, por medo de que você se canse, ou talvez porque eles já se cansaram de você.
Mastroianni - É verdade, é isso mesmo. Com as mulheres, é muito mais fácil de perceber. De repente, elas se tornam maternais.
Gassmann - Às vezes é uma vantagem.
Mastroianni - É, não vou dizer que não. Quando era jovem brincava de ser criança, mas depois, de uma hora para outra, era fácil virar um amante ardente.
Agora são elas que querem nos proteger, e a gente acaba dormindo, bem feliz, talvez com um pouco de saudade... Não sei se elas ficam felizes assim...
Gassmann - Até os filhos adotam uma atitude protetora.
Mastroianni - Quando estou com minha filha e vamos atravessar a rua, ela pega a minha mão...
Gassmann - Às vezes, todo esse respeito à minha volta me parece um insulto.
Scalfari - Atualmente, vocês representam com frequência papéis de velhos. A peça de teatro que você, Mastroianni, está interpretando trata desse tema: um pai cujo filho o interna em um asilo, um pai orgulhoso, voluntarioso e também um pouco maligno...
Mastroianni -
É, sem dúvida, um pai desesperado. Veja, na primeira vez que representei esse papel, fiz uma maquiagem de velho, pintei o cabelo de branco, marquei mais as rugas...
Na segunda vez, pensei: o que você está fazendo? Está se maquiando de velho? Mas, se você tem 72 anos, não tem a menor necessidade de maquiagem.
Scalfari - E você, Gassmann? No filme de Ettore Scola, "A Família", seu papel era o de um velho furioso e bastante triste. Qual foi o efeito que lhe causou esse personagem?
Gassmann -
Nenhum efeito especial. Para um ator, o papel faz parte da sua profissão -entra nele e depois sai dele com naturalidade.
Mastroianni - Muito bem, Vittorio, é exatamente isso.
Não aguento essas histórias dos atores que estudam o papel durante muitos meses para poder se identificar com o personagem, para se impregnar dele, e que, algumas vezes, vão para um convento, engordam ou emagrecem para se adaptar melhor à situação.
Robert de Niro, por exemplo, com essa história de viver o personagem a fundo, acabou se transformando em uma fábula e, com ela, ganha um montão de dinheiro.
Não sei, isso não acontece comigo. Falo em voz alta, estudo o script um par de dias e pronto.
Ainda me lembro de você, Vittorio, representando Hamlet: "Ser ou não ser...", declamava com essa sua voz grave e um pouco sonhadora. E, depois, quando entrava na coxia, gritava com o técnico: "Você aí, olhe essas luzes! Não está vendo que estão um lixo?".
Gassmann - Pode parecer estranho, mas é assim mesmo. O ator é como uma caixa vazia -e quanto mais vazia estiver, melhor.
O ator interpreta um personagem, e essa caixa se enche. Depois, termina o trabalho, e a caixa fica vazia. Uma vez me contaram que, quando Gary Cooper era muito jovem, estava olhando fixamente para o vazio, em silêncio.
A mãe dele chegou perto e lhe perguntou: "O que está pensando?". E ele respondeu: "Não estou pensando absolutamente nada". E a mãe disse: "Então você será um excelente ator".
O ator não deve ser culto e nem sequer inteligente. Acho que deve ser até um pouco tonto. É, é isso, quanto mais tonto, melhor.
Scalfari - Queria voltar a falar de mulheres. Como vocês tiveram muitas, também devem ter terminado inúmeros relacionamentos. São capazes de terminar um relacionamento com facilidade?
Mastroianni -
Nada disso. Se fosse por mim, nunca romperia com ninguém.
Scalfari - Mas isso significa afundar num mar de mentiras.
Mastroianni -
Um oceano de mentiras. Mentiras boas, é claro -como pensar que, sem mim, ela vai viver mal, que não será bastante amada, nem estará bem protegida, e que, portanto, minha obrigação é preservar esse relacionamento custe o que custar.
Gassmann - Para mim, as separações também foram difíceis, dificílimas, sempre tentei fazer com que fosse ela a que terminasse a relação. Pelo menos a gente tem menos responsabilidade, fica com menos complexo de culpa. Se fosse possível viver na mais completa inocência...
Mastroianni - E por muito tempo...
Gassmann - Talvez fundando uma residência, uma casa de repouso, para velhos atores e velhos diretores, para poder conversar um pouco sobre as nossas coisas...
Scalfari - E quem convidariam para essa casa de repouso? Quem são seus amigos?
Gassmann -
Bem, começaria por Vittorio de Sica.
Mastroianni - E Fellini.
Gassmann - Gostaria de convidar John Barrymore, Charles Laughton, Lawrence Olivier...
Mastroianni - E também Cary Grant, Gary Cooper, Clark Gable...
Scalfari - Convidariam Marlon Brando?
Gassmann -
Melhor não. É uma casa de repouso.

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