São Paulo, sábado, 04 de janeiro de 2003

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"COM UMA PERNA SÓ"

Autor narra sua recuperação de uma lesão na perna

Prolixidade vira inimiga das boas idéias de Oliver Sacks

JESUS DE PAULA ASSIS
FREE-LANCE PARA A FOLHA

"Com uma Perna Só" é o resultado do trabalho de seis editores. Eles tiraram 90% de um texto com 300 mil palavras, que ainda assim é prolixo e repetitivo.
A sinopse: caminhando em um lugar ermo na Noruega, Oliver Sacks cai e tem seu quadríceps (grande músculo da parte anterior da coxa) esquerdo seccionado. É levado para um hospital em Londres e operado. A cirurgia vai bem, mas ele não sente a perna. Até que ele retome a confiança de que voltará a senti-la, passam-se 18 dias. Depois de um mês em uma casa de repouso, está bem.
Para descrever a idéia da ausência da perna, ele repete à exaustão termos como alienação, abandono, inexistência, fantasma, abismo, lugar nenhum etc. E tudo isso lhe causa impressões medonhas, aterrorizantes, insondáveis etc. E desfilam nas páginas citações da Bíblia, Goethe, Beckett, Einstein, Mendelsohn, Galileu, Donne, Eliot, Planck, Mozart, William Harvey, Wittgenstein, o doutor Johnson e mesmo um remoto São João da Cruz, sem falar nos especialistas óbvios: Freud, Charcot e Luria (a quem o livro é dedicado).
Por vezes o problema da recuperação é descrito em frases como "Talvez fosse necessário haver, antes disso, escuridão e silêncio infinitos. Talvez esse fosse o útero, o útero-noite no qual a vida é criada". Útero-noite?
Tudo poderia ser resumido em "quando existe uma lesão de um nervo -ou de uma ramificação desse nervo-, perde-se não apenas a sensibilidade, mas a própria noção da existência do membro afetado". E ponto.
Como sempre, a prolixidade é inimiga do leitor e das boas idéias do autor. E há boas idéias, é verdade, dispersas nas pouco mais de 200 monocórdicas páginas.
Quanto à lesão neural, o que há para ser dito é o pouco que está acima. Quanto à condição de paciente, talvez a contribuição mais importante do livro, Sacks aborda o problema da coisificação das pessoas em um hospital.
Não estão apenas doentes e incapacitadas temporariamente para o mundo. Estão sujeitas a regras, a horários, à perda completa da privacidade e são forçadas a abandonar os hábitos que fazem da vida uma experiência individual, para se adequarem às rotinas do ambiente, a começar pelo ridículo roupão aberto na parte de trás que todo ex-hospitalizado odeia. Tudo o que o paciente pode fazer é ser paciente, contar com a condescendência dos funcionários sempre muito ocupados que passam rapidamente pela enfermaria onde ele jaz impotente.
Mas, infelizmente, veicular emoções é coisa para ficcionistas bons. Aos cientistas, resta descrever o melhor que puderem a diversidade das experiências. Já a autodescrição envolve o domínio de um talento diferente. Sacks apenas se estende em torno de um assunto, sem transmiti-lo ao leitor. De pouco servem citações e notas de rodapé, características do texto científico. É preciso arte.


Com uma Perna Só
 
Autor: Oliver Sacks
Editora: Companhia das Letras
Quanto: a definir (209 págs.)



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