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RODAPÉ
Solução achada por raelianos é tão brilhante quanto simples
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
Numa época em que aviões
são transformados em mísseis e os mísseis propriamente ditos estão prestes a voar, há coisas
demais no ar para que as pessoas
se ocupem de discos voadores: os
objetos identificáveis eclipsam os
não-identificados. A obsessão
com espaçonaves alienígenas,
quando alcançou seu ápice, lá pelos anos 70/80, despertou o interesse até mesmo da esquerda organizada.
Certa tendência trotskista apresentou então uma tese curiosa:
como é inegável que os OVNIs
existem e cruzaram milhares ou
milhões de anos-luz para visitar
nosso bairro, eles comprovam a
existência de uma tecnologia infinitamente superior à nossa e apenas podem ter sido criados por
uma civilização que, após resolver
a luta de classes e abolir os grilhões da propriedade privada que
entravavam o desenvolvimento
das forças produtivas, edificou na
Terra, ou melhor, em algum outro planeta, a utopia (literalmente,
nesse caso) celestial do socialismo
superior.
Conclusão: Darth Vader representava a agonia final do capitalismo decadente, porque os extraterrestres se constituem, de fato,
em aliados naturais do proletariado em sua luta.
O antropólogo norte-americano Marvin Harris tem, no entanto, uma objeção séria a esse raciocínio: quando ocorreu o encontro
entre Homo sapiens sapiens e
neandertais, europeus e americanos nativos ou mamíferos placentários e marsupiais, o resultado,
para as populações tecnológica ou
biologicamente menos competitivas, foi absolutamente catastrófico. Tigres e leões não são sócios
fundadores da Associação Protetora dos Animais.
Não se rendam, terráqueos: tudo o que se poderia esperar de um
contato imediato com nossos vizinhos intergalácticos estaria menos para "ET" do que para
"Alien" e, embora indigesto para
nós, seria nutritivo para eles.
A conversa acerca de discos
voadores é o único aspecto lunático da seita ou religião que anunciou recentemente ter clonado
um ser humano: a Revolução
Raeliana.
Fundada, de acordo com seu site (www.rael.org/int/portuge
se/index.html), em 1973, ela ainda se apega a esse modismo arcaico, mas, de resto, poderia ter sido
inventada meses ou dias atrás para zombar seja da direita religiosa
americana, seja da esquerda antiglobalizante européia, duas tendências aparentemente antagônicas que convergem, porém, na negação dos princípios iluministas
(endossados, aliás, por Marx, Engels e todos os seus seguidores
clássicos) segundo os quais o progresso tecnológico e material, capaz de libertar o homem do reino
da necessidade, é algo indiscutivelmente bom.
Quanto há de seriedade e de picaretagem no raelianismo é difícil
saber. Ocorre que, de um ponto
de vista agnóstico, a mesma indagação (com respostas semelhantes) aplica-se a qualquer outra seita ou religião, uma distinção que,
de resto, não faz sentido.
Os raelianos, contudo, fizeram
uma descoberta importantíssima,
ou seja, a de que a maneira mais
eficaz de se contrapor a uma religião é com outra.
Isso decorre de um paradoxo
histórico quase irresolúvel: mesmo o país que melhor conseguiu
equacionar a questão da crença
religiosa, reconhecendo-lhe a legitimidade humana ao mesmo
tempo em que a mantém constitucionalmente apartada da política, está sujeito à sua ingerência
nas esferas legal, educacional,
científica etc.
Se as religiões perderam poder
político, elas conquistaram em
troca uma espécie de monopólio
das boas intenções e o mesmo se
pode dizer, sobretudo após a derrocada soviética, da esquerda
contemporânea. Mesmo quando
as doutrinas ou atividades de uma
igreja ou ONG acarretam miséria,
fome e doença, elas seguem sendo
consideradas moralmente superiores a qualquer multinacional
que, para satisfazer "mercenariamente" seus acionistas, encontrasse a cura da Aids ou, com alimentos geneticamente modificados, acabasse com a fome na África. Em outras palavras, não se trata de saber se o médico salva o paciente, mas se ele age por amor ou
por dinheiro.
A clonagem é um dos desenvolvimentos mais revolucionários da
história e não existe motivo racional para não explorar todo o seu
potencial. Como se contrapor, todavia, a gente que quer impedi-lo
porque isso ofende seu Deus ou o
equilíbrio sagrado da natureza
ou, pior ainda, pode ser rentável?
Discutir lógica e/ou cientificamente com clérigos ou militantes
verdes está fora de questão: os argumentos a favor da clonagem
humana seriam derrotados tanto
num concílio quanto num comício. A solução que os raelianos
acharam é tão brilhante quanto
simples: inventar uma nova doutrina que não apenas a tolera como também a promove.
Uma vez que tal promoção vem
envolta no manto da religião e de
sua automática boa-fé (afinal, por
que questionar as intenções do
raelianismo e não as do cristianismo, judaísmo, islamismo etc.?),
chega-se não a uma vitória impossível sobre os fanáticos variados, mas a um empate que, na
prática, os põe de lado, abrindo o
caminho para os cientistas.
Não é necessário crer em discos
voadores para ver que os raelianos acharam um atalho que consiste menos em combater o obscurantismo do que em contorná-lo e seguir rumo ao que importa.
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