São Paulo, sábado, 04 de janeiro de 2003

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RODAPÉ

Solução achada por raelianos é tão brilhante quanto simples

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

Numa época em que aviões são transformados em mísseis e os mísseis propriamente ditos estão prestes a voar, há coisas demais no ar para que as pessoas se ocupem de discos voadores: os objetos identificáveis eclipsam os não-identificados. A obsessão com espaçonaves alienígenas, quando alcançou seu ápice, lá pelos anos 70/80, despertou o interesse até mesmo da esquerda organizada.
Certa tendência trotskista apresentou então uma tese curiosa: como é inegável que os OVNIs existem e cruzaram milhares ou milhões de anos-luz para visitar nosso bairro, eles comprovam a existência de uma tecnologia infinitamente superior à nossa e apenas podem ter sido criados por uma civilização que, após resolver a luta de classes e abolir os grilhões da propriedade privada que entravavam o desenvolvimento das forças produtivas, edificou na Terra, ou melhor, em algum outro planeta, a utopia (literalmente, nesse caso) celestial do socialismo superior.
Conclusão: Darth Vader representava a agonia final do capitalismo decadente, porque os extraterrestres se constituem, de fato, em aliados naturais do proletariado em sua luta.
O antropólogo norte-americano Marvin Harris tem, no entanto, uma objeção séria a esse raciocínio: quando ocorreu o encontro entre Homo sapiens sapiens e neandertais, europeus e americanos nativos ou mamíferos placentários e marsupiais, o resultado, para as populações tecnológica ou biologicamente menos competitivas, foi absolutamente catastrófico. Tigres e leões não são sócios fundadores da Associação Protetora dos Animais.
Não se rendam, terráqueos: tudo o que se poderia esperar de um contato imediato com nossos vizinhos intergalácticos estaria menos para "ET" do que para "Alien" e, embora indigesto para nós, seria nutritivo para eles.
A conversa acerca de discos voadores é o único aspecto lunático da seita ou religião que anunciou recentemente ter clonado um ser humano: a Revolução Raeliana.
Fundada, de acordo com seu site (www.rael.org/int/portuge se/index.html), em 1973, ela ainda se apega a esse modismo arcaico, mas, de resto, poderia ter sido inventada meses ou dias atrás para zombar seja da direita religiosa americana, seja da esquerda antiglobalizante européia, duas tendências aparentemente antagônicas que convergem, porém, na negação dos princípios iluministas (endossados, aliás, por Marx, Engels e todos os seus seguidores clássicos) segundo os quais o progresso tecnológico e material, capaz de libertar o homem do reino da necessidade, é algo indiscutivelmente bom.
Quanto há de seriedade e de picaretagem no raelianismo é difícil saber. Ocorre que, de um ponto de vista agnóstico, a mesma indagação (com respostas semelhantes) aplica-se a qualquer outra seita ou religião, uma distinção que, de resto, não faz sentido.
Os raelianos, contudo, fizeram uma descoberta importantíssima, ou seja, a de que a maneira mais eficaz de se contrapor a uma religião é com outra.
Isso decorre de um paradoxo histórico quase irresolúvel: mesmo o país que melhor conseguiu equacionar a questão da crença religiosa, reconhecendo-lhe a legitimidade humana ao mesmo tempo em que a mantém constitucionalmente apartada da política, está sujeito à sua ingerência nas esferas legal, educacional, científica etc.
Se as religiões perderam poder político, elas conquistaram em troca uma espécie de monopólio das boas intenções e o mesmo se pode dizer, sobretudo após a derrocada soviética, da esquerda contemporânea. Mesmo quando as doutrinas ou atividades de uma igreja ou ONG acarretam miséria, fome e doença, elas seguem sendo consideradas moralmente superiores a qualquer multinacional que, para satisfazer "mercenariamente" seus acionistas, encontrasse a cura da Aids ou, com alimentos geneticamente modificados, acabasse com a fome na África. Em outras palavras, não se trata de saber se o médico salva o paciente, mas se ele age por amor ou por dinheiro.
A clonagem é um dos desenvolvimentos mais revolucionários da história e não existe motivo racional para não explorar todo o seu potencial. Como se contrapor, todavia, a gente que quer impedi-lo porque isso ofende seu Deus ou o equilíbrio sagrado da natureza ou, pior ainda, pode ser rentável?
Discutir lógica e/ou cientificamente com clérigos ou militantes verdes está fora de questão: os argumentos a favor da clonagem humana seriam derrotados tanto num concílio quanto num comício. A solução que os raelianos acharam é tão brilhante quanto simples: inventar uma nova doutrina que não apenas a tolera como também a promove.
Uma vez que tal promoção vem envolta no manto da religião e de sua automática boa-fé (afinal, por que questionar as intenções do raelianismo e não as do cristianismo, judaísmo, islamismo etc.?), chega-se não a uma vitória impossível sobre os fanáticos variados, mas a um empate que, na prática, os põe de lado, abrindo o caminho para os cientistas.
Não é necessário crer em discos voadores para ver que os raelianos acharam um atalho que consiste menos em combater o obscurantismo do que em contorná-lo e seguir rumo ao que importa.



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