São Paulo, sexta-feira, 04 de fevereiro de 2005

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CRÍTICA

Filme desfila cadência bonita do soul

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

A vida do homem foi cinzelada para o melodrama lacrimogêneo. O menino negro e pobre que vê o irmãozinho afogar-se em uma tina metálica onde a mãe solteira ganhava a vida de lavadeira, o glaucoma que apaga sua vista ainda garoto, a morte prematura da provedora, o jovem que toma a estrada para sustentar-se com sua música, a redenção lenta e gradual; a glória suprema.
Ray Charles pagou todas as prestações do carnê "Hollywood Vai Pegar Minha Vida e Transformar em um Condoído "Gata Borralheira" da Música Americana". A maior e não a única virtude de "Ray", o filme, é de ter se valido com parcimônia desse talão.
Um diretor e um roteirista meio grau mais ortodoxos e o filme começaria com algo como um arrastado "Georgia on My Mind", um cenário árido e ensolarado, a mãe de Charles lavando roupa enquanto seus filhinhos remelentos corriam descalços na terra batida.
Cenas dessa natureza dão sim as caras aqui e ali na produção de Taylor Hackford, mas é a música, hallelujah, o fio condutor, a começar da tomada inicial, com óculos escuros que refletem o astro do soul em ação, sozinho em um palco escuro.
Ray Charles foi um engenheiro genético da soul music. Implantou no R&B genes dominantes de gospel, costurou cromossomos de jazz no pop e na mistura adicionou DNAs de country. Foi, em resumo, um artista do ritmo.
"Ray" mostra isso tudo com certa generosidade para uma produção feita nas colinas da Califórnia. E mostra isso com ritmo.
São duas horas e meia, duas horas e meia que deslizam um bocado bem, mesmo tendo em conta que a sessão para a imprensa foi em uma segunda-feira de manhã.
Não é virtude sozinha do diretor. A edição bem temperada e o roteiro que acolhe em boas medidas os "chiaroscuros" da personalidade de Charles, que suas últimas décadas de estrelão pop quase apagaram, contribuem para a boa cadência da história.
Os 17 anos de mergulho no reino heroína, o mulherenguismo militante (o segredo era apalpar os pulsos das moças), a busca desenfreada por dinheiro do garoto que "ninguém faria de aleijado", como pregava o corolário de sua mãe, fazem o contraponto necessário ao endeusamento de Ray.
Por fim, 70 linhas depois, aquilo que todos os jornais do mundo, do "Dallas Observer" ao "Korea Times" falaram ou ainda vão falar, cada um a seu modo: a performance de Jamie Foxx como Ray Charles é mediúnica -uma das maiores barbadas da história recente do Oscar.
Quarta-Feira de Cinzas do texto e a apuração registra então notas elevadas nos quesitos bateria, evolução, harmonia, comissão de frente e mestre-sala (as porta-bandeiras acompanham).
Os meio-pontos nos envelopes de alegoria e enredo talvez custem o campeonato a "Ray". O alcoolismo caricato de uma de suas amantes, as frases na linha "não sou babá de cego, não sou cão" e um mecanicismo às vezes irritante (fato "a" leva ao irredutível fato "b") são algumas das notas dissonantes. Mas o samba é bom. O filme chega à dispersão garantindo a cadência bonita do soul.


Ray
Ray
   
Direção: Taylor Hackford
Produção: EUA, 2004
Com: Jamie Foxx e Kerry Washington
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Shopping D, Villa-Lobos e circuito


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