|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Filme desfila cadência bonita do soul
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
A vida do homem foi cinzelada para o melodrama lacrimogêneo. O menino negro e pobre que vê o irmãozinho afogar-se
em uma tina metálica onde a mãe
solteira ganhava a vida de lavadeira, o glaucoma que apaga sua vista ainda garoto, a morte prematura da provedora, o jovem que toma a estrada para sustentar-se
com sua música, a redenção lenta
e gradual; a glória suprema.
Ray Charles pagou todas as
prestações do carnê "Hollywood
Vai Pegar Minha Vida e Transformar em um Condoído "Gata Borralheira" da Música Americana".
A maior e não a única virtude de
"Ray", o filme, é de ter se valido
com parcimônia desse talão.
Um diretor e um roteirista meio
grau mais ortodoxos e o filme começaria com algo como um arrastado "Georgia on My Mind",
um cenário árido e ensolarado, a
mãe de Charles lavando roupa enquanto seus filhinhos remelentos
corriam descalços na terra batida.
Cenas dessa natureza dão sim as
caras aqui e ali na produção de
Taylor Hackford, mas é a música,
hallelujah, o fio condutor, a começar da tomada inicial, com óculos
escuros que refletem o astro do
soul em ação, sozinho em um palco escuro.
Ray Charles foi um engenheiro
genético da soul music. Implantou no R&B genes dominantes de
gospel, costurou cromossomos
de jazz no pop e na mistura adicionou DNAs de country. Foi, em
resumo, um artista do ritmo.
"Ray" mostra isso tudo com
certa generosidade para uma produção feita nas colinas da Califórnia. E mostra isso com ritmo.
São duas horas e meia, duas horas e meia que deslizam um bocado bem, mesmo tendo em conta
que a sessão para a imprensa foi
em uma segunda-feira de manhã.
Não é virtude sozinha do diretor. A edição bem temperada e o
roteiro que acolhe em boas medidas os "chiaroscuros" da personalidade de Charles, que suas últimas décadas de estrelão pop quase apagaram, contribuem para a
boa cadência da história.
Os 17 anos de mergulho no reino heroína, o mulherenguismo
militante (o segredo era apalpar
os pulsos das moças), a busca desenfreada por dinheiro do garoto
que "ninguém faria de aleijado",
como pregava o corolário de sua
mãe, fazem o contraponto necessário ao endeusamento de Ray.
Por fim, 70 linhas depois, aquilo
que todos os jornais do mundo,
do "Dallas Observer" ao "Korea
Times" falaram ou ainda vão falar, cada um a seu modo: a performance de Jamie Foxx como Ray
Charles é mediúnica -uma das
maiores barbadas da história recente do Oscar.
Quarta-Feira de Cinzas do texto
e a apuração registra então notas
elevadas nos quesitos bateria,
evolução, harmonia, comissão de
frente e mestre-sala (as porta-bandeiras acompanham).
Os meio-pontos nos envelopes
de alegoria e enredo talvez custem
o campeonato a "Ray". O alcoolismo caricato de uma de suas
amantes, as frases na linha "não
sou babá de cego, não sou cão" e
um mecanicismo às vezes irritante (fato "a" leva ao irredutível fato
"b") são algumas das notas dissonantes. Mas o samba é bom.
O filme chega à dispersão
garantindo a cadência bonita do
soul.
Ray
Ray
Direção: Taylor Hackford
Produção: EUA, 2004
Com: Jamie Foxx e Kerry Washington
Quando: a partir de hoje nos cines
Bristol, Shopping D, Villa-Lobos e circuito
Texto Anterior: "Ray": Diretor expõe fragilidade de Charles Próximo Texto: Panorâmica - Música 1: Peter Doherty, ex-líder dos Libertines, é preso por agressão física em Londres Índice
|