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BERNARDO CARVALHO
Entre o paternalismo e o medo
"Um Bárbaro na Ásia",
de Henri Michaux, foi
publicado há 70 anos. São notas
de viagem com as impressões do
autor sobre a Índia, a China, o Japão e o sudeste asiático. Borges,
que o traduziu para o espanhol,
dizia que o livro não era "nem
apologia nem ataque, mas as
duas coisas ao mesmo tempo, e
ainda outras tantas".
É comum dizer que Michaux
(1899-1957) "viajava contra".
Contra a idéia de pátria, contra
uma identidade confortável e ilusória, menos para se encontrar do
que para se perder.
À primeira vista, "Um Bárbaro
na Ásia" parece uma sucessão de
opiniões e impressões jornalísticas sobre outros povos. Mas, como
a obra posterior do escritor e suas
experiências com as drogas acabariam revelando, para ele a viagem sempre foi interior, uma forma de expandir a consciência.
Michaux lança mão das viagens para incorporar a diferença
dos outros, para aprender a se estranhar. As viagens põem em movimento uma dinâmica entre o
exterior e o interior, entre o real e
o imaginário, que lhe permite estranhar-se como a um estrangeiro, como se fosse um "bárbaro". É
uma forma de pôr à prova o seu
narcisismo de europeu civilizado.
A perda do narcisismo e da
identidade diante do outro também é tema de um conto extraordinário de Paul Bowles, que no
Brasil foi traduzido por Rubens
Figueiredo e incluído na coletânea "Chá nas Montanhas" (Rocco). O ponto de vista é o do horror.
Chama-se "Um Episódio Distante" e conta como um linguista
francês acaba literalmente perdendo a língua e se tornando escravo de povos do Saara, louco,
sem linguagem, reduzido a uma
espécie de animal.
É difícil igualar em literatura
um sentimento de pânico tão
agudo quanto o que é provocado
pela leitura da perda violenta da
identidade cultural narrada por
Bowles. A conclusão mais terrível
é que existe um ponto cego entre
as culturas. Diante da incompreensão, ao indivíduo que se crê
superior, orgulhoso da sua identidade, só resta escolher entre duas
fantasias, para o bem ou para o
mal, entre duas cegueiras, entre a
vulnerabilidade do paternalismo
e a beligerância do medo.
Quando viajei pelo oeste da
Mongólia, em 2002, houve uma
tarde em que meu guia decidiu
fazer um desvio para me mostrar
um lago, Ereen Nuur, que ficava
incrustado entre dunas enormes.
A idéia era passar a noite às margens do lago. Pelo lado em que
atingimos as dunas, porém, não
havia acesso para o jipe. Tínhamos que atravessá-las a pé, uma
caminhada de 20 minutos pela
areia, com as barracas nas costas.
O motorista preferia dormir no
carro. "Por razões de segurança",
preferia não abandoná-lo à noite.
Não havia ninguém quando
chegamos - a Mongólia é três
vezes a França, mas a população
não chega a 2,5 milhões, sendo
que um terço vive na capital,
Ulaanbaatar. Armamos as barracas e aproveitamos para tomar
banho e lavar a roupa. O sol só se
punha às 11 da noite. Lá pelas
tantas, ouvimos um barulho distante de motor e avistamos um jipe que vinha da margem nordeste
com os faróis acesos na nossa direção.
Eram quatro mongóis. Meu
guia reconheceu um deles, um ex-lutador medíocre da cidade de
Altai. Pararam a dois metros da
minha barraca. Perguntaram se
tínhamos visto outro carro. Diziam estar à procura de amigos.
Como eu não entendia uma palavra, também não conseguia compreender por que tinham decidido se instalar logo ali, a dois metros da minha barraca, quando o
resto do lago estava vazio. Falavam alto, bebiam, cuspiam e arrotavam. Pulavam na água, se
engalfinhavam uns com os outros. De repente, ligaram o rádio
do carro aos brados e começaram
a cantar. Parecia provocação.
O guia estava em silêncio, sentado à porta da sua barraca, como um bicho acuado. Perguntei o
que era. Ele me garantiu que não
era nada. De repente, calçou os
sapatos. Perguntei aonde ele pensava que ia. Me respondeu que estava com frio. Achei que estivesse
se preparando para fugir numa
emergência. E a única rota de fuga era o caminho de 20 minutos
pelas dunas, deixando tudo para
trás. Estávamos encurralados.
Para distrair a minha apreensão, comecei a tomar notas. Um
dos mongóis veio até onde eu estava, apontou para o meu bloco e,
desafiador, perguntou alguma
coisa, que o guia traduziu de longe. Queria saber o que eu estava
escrevendo. Pela lógica paternalista com que eu vinha tratando
os nômades até então, o tom do
intruso só podia soar como intimidação e confronto. Não correspondia à imagem gentil que eu tinha criado na minha cabeça.
Só foram embora à meia-noite,
e durante todo esse tempo eu anotei sem parar, uma espécie de terapia ocupacional, descrevendo
tudo o que via, num estado de
alerta e de pânico crescentes. No
mínimo, seria interessante reler
aquilo depois. Achei que pudesse
transpor o pânico automaticamente para o bloco de anotações,
que bastava sentir medo para expressá-lo.
Só conseguimos dormir muito
depois de terem ido embora. No
dia seguinte, reli o que tinha escrito sob a tensão da véspera. E,
para meu espanto, o pânico não
estava lá. Nem o perigo. O texto
anódino revelava antes o meu
equívoco e a minha alucinação, o
meu papel ridículo de estrangeiro. Minhas anotações descreviam
uma cena banal e inofensiva.
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