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São Paulo, terça-feira, 04 de março de 2003

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BERNARDO CARVALHO

Entre o paternalismo e o medo

"Um Bárbaro na Ásia", de Henri Michaux, foi publicado há 70 anos. São notas de viagem com as impressões do autor sobre a Índia, a China, o Japão e o sudeste asiático. Borges, que o traduziu para o espanhol, dizia que o livro não era "nem apologia nem ataque, mas as duas coisas ao mesmo tempo, e ainda outras tantas".
É comum dizer que Michaux (1899-1957) "viajava contra". Contra a idéia de pátria, contra uma identidade confortável e ilusória, menos para se encontrar do que para se perder.
À primeira vista, "Um Bárbaro na Ásia" parece uma sucessão de opiniões e impressões jornalísticas sobre outros povos. Mas, como a obra posterior do escritor e suas experiências com as drogas acabariam revelando, para ele a viagem sempre foi interior, uma forma de expandir a consciência.
Michaux lança mão das viagens para incorporar a diferença dos outros, para aprender a se estranhar. As viagens põem em movimento uma dinâmica entre o exterior e o interior, entre o real e o imaginário, que lhe permite estranhar-se como a um estrangeiro, como se fosse um "bárbaro". É uma forma de pôr à prova o seu narcisismo de europeu civilizado.
A perda do narcisismo e da identidade diante do outro também é tema de um conto extraordinário de Paul Bowles, que no Brasil foi traduzido por Rubens Figueiredo e incluído na coletânea "Chá nas Montanhas" (Rocco). O ponto de vista é o do horror. Chama-se "Um Episódio Distante" e conta como um linguista francês acaba literalmente perdendo a língua e se tornando escravo de povos do Saara, louco, sem linguagem, reduzido a uma espécie de animal.
É difícil igualar em literatura um sentimento de pânico tão agudo quanto o que é provocado pela leitura da perda violenta da identidade cultural narrada por Bowles. A conclusão mais terrível é que existe um ponto cego entre as culturas. Diante da incompreensão, ao indivíduo que se crê superior, orgulhoso da sua identidade, só resta escolher entre duas fantasias, para o bem ou para o mal, entre duas cegueiras, entre a vulnerabilidade do paternalismo e a beligerância do medo.
Quando viajei pelo oeste da Mongólia, em 2002, houve uma tarde em que meu guia decidiu fazer um desvio para me mostrar um lago, Ereen Nuur, que ficava incrustado entre dunas enormes. A idéia era passar a noite às margens do lago. Pelo lado em que atingimos as dunas, porém, não havia acesso para o jipe. Tínhamos que atravessá-las a pé, uma caminhada de 20 minutos pela areia, com as barracas nas costas. O motorista preferia dormir no carro. "Por razões de segurança", preferia não abandoná-lo à noite.
Não havia ninguém quando chegamos - a Mongólia é três vezes a França, mas a população não chega a 2,5 milhões, sendo que um terço vive na capital, Ulaanbaatar. Armamos as barracas e aproveitamos para tomar banho e lavar a roupa. O sol só se punha às 11 da noite. Lá pelas tantas, ouvimos um barulho distante de motor e avistamos um jipe que vinha da margem nordeste com os faróis acesos na nossa direção.
Eram quatro mongóis. Meu guia reconheceu um deles, um ex-lutador medíocre da cidade de Altai. Pararam a dois metros da minha barraca. Perguntaram se tínhamos visto outro carro. Diziam estar à procura de amigos. Como eu não entendia uma palavra, também não conseguia compreender por que tinham decidido se instalar logo ali, a dois metros da minha barraca, quando o resto do lago estava vazio. Falavam alto, bebiam, cuspiam e arrotavam. Pulavam na água, se engalfinhavam uns com os outros. De repente, ligaram o rádio do carro aos brados e começaram a cantar. Parecia provocação.
O guia estava em silêncio, sentado à porta da sua barraca, como um bicho acuado. Perguntei o que era. Ele me garantiu que não era nada. De repente, calçou os sapatos. Perguntei aonde ele pensava que ia. Me respondeu que estava com frio. Achei que estivesse se preparando para fugir numa emergência. E a única rota de fuga era o caminho de 20 minutos pelas dunas, deixando tudo para trás. Estávamos encurralados.
Para distrair a minha apreensão, comecei a tomar notas. Um dos mongóis veio até onde eu estava, apontou para o meu bloco e, desafiador, perguntou alguma coisa, que o guia traduziu de longe. Queria saber o que eu estava escrevendo. Pela lógica paternalista com que eu vinha tratando os nômades até então, o tom do intruso só podia soar como intimidação e confronto. Não correspondia à imagem gentil que eu tinha criado na minha cabeça.
Só foram embora à meia-noite, e durante todo esse tempo eu anotei sem parar, uma espécie de terapia ocupacional, descrevendo tudo o que via, num estado de alerta e de pânico crescentes. No mínimo, seria interessante reler aquilo depois. Achei que pudesse transpor o pânico automaticamente para o bloco de anotações, que bastava sentir medo para expressá-lo.
Só conseguimos dormir muito depois de terem ido embora. No dia seguinte, reli o que tinha escrito sob a tensão da véspera. E, para meu espanto, o pânico não estava lá. Nem o perigo. O texto anódino revelava antes o meu equívoco e a minha alucinação, o meu papel ridículo de estrangeiro. Minhas anotações descreviam uma cena banal e inofensiva.



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