|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Livro ultrapassa enredo policial
MANUEL DA COSTA PINTO
especial para a Folha
O marquês de Sade está à espreita,
na gélida escuridão
de uma das celas do
hospício de Charenton, onde o barão de LaChafoi se encontra trancafiado após uma noite de devassidão e excessos. A orgia que o barão promoveu no castelo de Lagrange terminou com o assassinato de um dos quatro participantes. Mas ele não se lembra de
nada: após experimentar as pastilhas afrodisíacas preparadas por
sua mulher segundo receita do
próprio Sade, caiu em sono profundo e só acordou quando os
guardas o surpreenderam, dando
início a um processo judiciário.
Agora, sua única esperança é o
autor de "A Filosofia da Alcova",
o escritor e imoralista que passou
a maior parte da vida nas prisões
do Antigo Regime (sob acusação
de blasfêmia e sodomia) e nas
masmorras do Terror revolucionário (já que o ateísmo fazia dele
um libertino, ou seja, um aristocrata), morrendo em 1814 no hospício de Charenton, aos 72 anos.
O marquês conhece como ninguém a corrupção natural do ser
humano e só ele pode lançar luz
sobre o que aconteceu com LaChafoi e sobre o universo alucinado de "Medo de Sade", romance
de Bernardo Carvalho que faz
parte da coleção "Literatura ou
Morte". O romance se divide em
duas partes. Na primeira ("Ato 1",
escrito na forma de diálogo, a
exemplo de "A Filosofia da Alcova"), o barão de LaChafoi conversa em sua cela, que supõe pertencer ao hospício de Charenton,
com uma voz, que supõe ser de
Sade. E é com o auxílio dessa voz
que ele procura explicação para o
que de fato ocorreu durante a orgia envolvendo sua mulher, seu
primo (o conde de Suz) e a jovem
Martine (criada do conde). Por
que sua mulher retornara ao castelo de Lagrange após 15 anos?
Por que ela estaria acompanhada
pelo conde de Suz, que nunca participava de suas orgias? E por que
eles teriam surgido do nada justamente no momento em que ele
estava prestes a possuir a bela
Martine? Qual deles havia morrido? Quem conspirou contra
quem? Teria ele participado do
assassinato num momento de
loucura? Ou seria tudo isso essa
cela escura, essa voz fruto de um
solipsismo delirante, de um cérebro corroído pelo sadismo?
Quando tudo parece claro,
quando LaChafoi parece ter reconstituído os fatos que o levaram
até ali, a cena se interrompe e passamos ao "Ato 2". E tudo se complica novamente.
Estamos em pleno século 20.
Surge um narrador que conta, em
dois longos e labirínticos parágrafos, a história de um francês que
mantinha com a mulher um jogo
mórbido denominado "medo de
Sade", que consistia de armadilhas que um armava para o outro,
produzindo o horror em doses
cada vez maiores.
Cúmplices num golpe financeiro, eles moravam num antigo vilarejo próximo às ruínas do castelo do barão de LaChafoi e veneravam seu culto do vício.
Ao se entregar a esse jogo de auto-aniquilação, eles se expõem à
paranóia da interpretação ininterrupta do outro. Cada gesto, frase ou olhar de um provoca no outro a ansiedade diante do horror
em gestação até o ponto em que a
solução final, o assassinato, pode
dar um fim paradoxal ao jogo:
pois aquele que mata é aquele que
não suportou o medo, reconhecendo assim a vitória de sua vítima e mergulhando definitivamente na loucura comparável
àquela do barão de LaChafoi.
Seria um sadismo com o leitor
contar como essas duas histórias
paralelas se encontram ao final do
romance, privando-o do prazer
da descoberta. Basta dizer que a
atmosfera onírica e a tentativa desesperada de compreender o que
está acontecendo vão bem além
do mero enredo policial sugerido
pelo título da coleção. Um enredo
no qual Sade não participa como
personagem, mas está à espreita,
fornecendo a argamassa para que
Bernardo Carvalho faça essa narrativa perversa, em que a coerência das versões e das interpretações é sempre solapada pela desrazão verdadeira dos fatos.
Manuel da Costa Pinto é jornalista e doutorando em teoria literária na USP, editor da
revista "Cult" e autor de "Albert Camus - Um
Elogio do Ensaio" (Ateliê Editorial)
Avaliação:
Livro: Medo de Sade
Autor: Bernardo Carvalho
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 16 (110 págs.)
Texto Anterior: Literatura ou morte: Carvalho vai ao teatro com "Sade" Próximo Texto: "A Marca da Maldade" - Fernando Morgado: Do texto ao filme, Welles muda tudo Índice
|