São Paulo, quinta-feira, 04 de maio de 2000


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CRÍTICA

Livro ultrapassa enredo policial

MANUEL DA COSTA PINTO
especial para a Folha

O marquês de Sade está à espreita, na gélida escuridão de uma das celas do hospício de Charenton, onde o barão de LaChafoi se encontra trancafiado após uma noite de devassidão e excessos. A orgia que o barão promoveu no castelo de Lagrange terminou com o assassinato de um dos quatro participantes. Mas ele não se lembra de nada: após experimentar as pastilhas afrodisíacas preparadas por sua mulher segundo receita do próprio Sade, caiu em sono profundo e só acordou quando os guardas o surpreenderam, dando início a um processo judiciário.
Agora, sua única esperança é o autor de "A Filosofia da Alcova", o escritor e imoralista que passou a maior parte da vida nas prisões do Antigo Regime (sob acusação de blasfêmia e sodomia) e nas masmorras do Terror revolucionário (já que o ateísmo fazia dele um libertino, ou seja, um aristocrata), morrendo em 1814 no hospício de Charenton, aos 72 anos.
O marquês conhece como ninguém a corrupção natural do ser humano e só ele pode lançar luz sobre o que aconteceu com LaChafoi e sobre o universo alucinado de "Medo de Sade", romance de Bernardo Carvalho que faz parte da coleção "Literatura ou Morte". O romance se divide em duas partes. Na primeira ("Ato 1", escrito na forma de diálogo, a exemplo de "A Filosofia da Alcova"), o barão de LaChafoi conversa em sua cela, que supõe pertencer ao hospício de Charenton, com uma voz, que supõe ser de Sade. E é com o auxílio dessa voz que ele procura explicação para o que de fato ocorreu durante a orgia envolvendo sua mulher, seu primo (o conde de Suz) e a jovem Martine (criada do conde). Por que sua mulher retornara ao castelo de Lagrange após 15 anos? Por que ela estaria acompanhada pelo conde de Suz, que nunca participava de suas orgias? E por que eles teriam surgido do nada justamente no momento em que ele estava prestes a possuir a bela Martine? Qual deles havia morrido? Quem conspirou contra quem? Teria ele participado do assassinato num momento de loucura? Ou seria tudo isso essa cela escura, essa voz fruto de um solipsismo delirante, de um cérebro corroído pelo sadismo?
Quando tudo parece claro, quando LaChafoi parece ter reconstituído os fatos que o levaram até ali, a cena se interrompe e passamos ao "Ato 2". E tudo se complica novamente.
Estamos em pleno século 20. Surge um narrador que conta, em dois longos e labirínticos parágrafos, a história de um francês que mantinha com a mulher um jogo mórbido denominado "medo de Sade", que consistia de armadilhas que um armava para o outro, produzindo o horror em doses cada vez maiores.
Cúmplices num golpe financeiro, eles moravam num antigo vilarejo próximo às ruínas do castelo do barão de LaChafoi e veneravam seu culto do vício.
Ao se entregar a esse jogo de auto-aniquilação, eles se expõem à paranóia da interpretação ininterrupta do outro. Cada gesto, frase ou olhar de um provoca no outro a ansiedade diante do horror em gestação até o ponto em que a solução final, o assassinato, pode dar um fim paradoxal ao jogo: pois aquele que mata é aquele que não suportou o medo, reconhecendo assim a vitória de sua vítima e mergulhando definitivamente na loucura comparável àquela do barão de LaChafoi.
Seria um sadismo com o leitor contar como essas duas histórias paralelas se encontram ao final do romance, privando-o do prazer da descoberta. Basta dizer que a atmosfera onírica e a tentativa desesperada de compreender o que está acontecendo vão bem além do mero enredo policial sugerido pelo título da coleção. Um enredo no qual Sade não participa como personagem, mas está à espreita, fornecendo a argamassa para que Bernardo Carvalho faça essa narrativa perversa, em que a coerência das versões e das interpretações é sempre solapada pela desrazão verdadeira dos fatos.


Manuel da Costa Pinto é jornalista e doutorando em teoria literária na USP, editor da revista "Cult" e autor de "Albert Camus - Um Elogio do Ensaio" (Ateliê Editorial)

Avaliação:    

Livro: Medo de Sade
Autor: Bernardo Carvalho
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 16 (110 págs.)


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