São Paulo, sábado, 04 de maio de 2002

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"PEIXE DE BICICLETA"

Psicanalista desenrola o barbante da vida

MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Todo neurótico é uma espécie de romancista de sua própria vida. Ainda que não escreva concretamente nenhuma linha em papel ou computador, o neurótico está sempre costurando sua história, explicando sua vida, tentando dar sentido ao sintoma, amarrar o futuro no passado, o começo no fim. Pode ser um mau romancista, geralmente é, mas não pára de escrever mentalmente a narrativa da qual ele é, claro, o personagem principal.
Jacques Lacan, em uma de suas afirmações enigmáticas, destinadas a nos fazer pensar, disse que a passagem por uma análise opera no sujeito uma mudança de estilo semelhante àquela que existe entre o romance e o conto. Não que uma história de vida fique mais interessante depois de um percurso de análise. Mas talvez o modo de narrá-la se torne mais leve, mais elegante. Já não há necessidade de tudo explicar, tudo controlar. O conto permite elipses, suspensões na ordem narrativa, espaços de silêncio.
Além disso, o conto, como diz o romancista argentino Ricardo Piglia, conta sempre duas histórias: uma explícita, destinada a conduzir o interesse do leitor, e outra oculta, embutida na primeira, cujo sentido só se revela no final. Como se o conto, melhor do que o romance (e aproximado à poesia), não temesse o inconsciente, lidando com elementos de incerteza por onde ele (o inconsciente do leitor? Do autor? Do próprio texto?) pudesse se manifestar.
Essas considerações me ocorreram ao ler o segundo livro de contos do psicanalista Sérgio Telles, "Peixe de Bicicleta", que assim como o primeiro, "O Mergulhador de Acapulco", remete o leitor ao "tempo da delicadeza" da canção de Chico Buarque.
Telles não é o único psicanalista que escreve literatura. Hélio Pellegrino foi poeta, seu filho Pedro foi poeta também e um escultor surpreendente. A psicanalista Samira Chalub, de São Paulo, era uma boa contista. A carioca Lívia García-Roza foi indicada para o Jabuti deste ano pelo seu quarto livro, a excelente novela "Cine Odeon".
Como eles, e outros tantos, Telles escreve por necessidade. É preciso fazer alguma outra coisa, tecer outra costura com o rude barbante de tantas vidas que nós, psicanalistas, passamos o tempo a desenrolar, para que não se embarace em nossas mãos. Para que não nos embaracemos nele.
Com aguda sensibilidade para os múltiplos sentidos que podem ser extraídos dos detalhes mais insignificantes de uma existência, Telles nos oferece neste novo livro 20 textos curtos, de características variadas.
Alguns são narrativas no sentido tradicional da palavra, ordenadas com começo, meio e fim, e uma certa tensão dramática conduzindo a atenção do leitor. É o caso de "Uma Coleção de Lápis", que abre o livro, conto de estrutura clássica em que um fragmento do tempo presente remete à rememoração de um incidente de infância, um ato mesquinho do qual o narrador se envergonha.
O tom levemente nostálgico que abre o conto dá lugar a um desfecho anticlimático, "adulto": o destino do objeto que evocou as lembranças do passado é o saco de lixo. É o caso de "Um Jantar", em que um encontro social é narrado segundo as diferentes perspectivas dos participantes, revelando os inevitáveis mal-entendidos e os desencontros que pontuam nossa relação com o outro.
Outros são pequenas crônicas, fragmentos, flashes do tempo perdido como o belo "Mesa" ou o comovente "Um Bilhete de Amor". São descrições com alto poder de condensação, que não precisam contar uma história para se justificar.
Telles não se preocupa com a unidade no que se refere à voz que conduz a narrativa. O "eu" narrador varia, arbitrariamente, de uma história a outra, o que talvez devesse ser evitado em um conjunto tão econômico de contos.
O que confere uma certa unidade ao conjunto não é a posição do narrador, nem uma marca estilística forte, mas uma certa melancolia que perpassa todos os textos, terminando com "Despedida", curta descrição de uma vida em estado terminal.
Há um aspecto, entretanto, em que o psicanalista sobrepuja o escritor. São os casos em que Telles não resiste à tentação de explicar as motivações embutidas em seu argumento. Passagens de psicanálise explícita às vezes poderiam ser evitadas, para não impedir o efeito enigmático do "conto (secreto) embutido dentro do conto", a que se refere Ricardo Piglia. Contos como "Barriga Adentro", "Retirada" e "Tique Nervoso" ficariam melhores sem os (sutis, é verdade) esclarecimentos oferecidos ao leitor.
É que literatura e psicanálise, nascidas da mesma perplexidade diante do vasto enigma humano, constroem a partir daí destinos bem diferentes. A primeira dá voz ao enigma, a segunda tenta decifrá-lo. A prática clínica diária gera em nós, psicanalistas, o hábito da explicação ainda que não para o analisando, ao menos para nós mesmos. É um hábito que a criação literária precisa desconstruir para se realizar plenamente pois, como lembra Godard em seu "Elogio ao Amor": na arte, "toda solução profana um problema". Ao que outra personagem completa, mais adiante: ... "e todo problema profana um enigma".


Maria Rita Kehl é psicanalista, ensaísta e autora de, entre outros, "Sobre Ética e Psicanálise" (Companhia das Letras)



Peixe de Bicicleta    
Autor: Sérgio Telles
Editora: EdUFSCar (Editora da Universidade Federal de São Carlos)
Quanto: R$ 23,50 (158 págs.)




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