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"PEIXE DE BICICLETA"
Psicanalista desenrola o barbante da vida
MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA
Todo neurótico é uma espécie de romancista de sua
própria vida. Ainda que não escreva concretamente nenhuma linha em papel ou computador, o
neurótico está sempre costurando sua história, explicando sua vida, tentando dar sentido ao sintoma, amarrar o futuro no passado,
o começo no fim. Pode ser um
mau romancista, geralmente é,
mas não pára de escrever mentalmente a narrativa da qual ele é,
claro, o personagem principal.
Jacques Lacan, em uma de suas
afirmações enigmáticas, destinadas a nos fazer pensar, disse que a
passagem por uma análise opera
no sujeito uma mudança de estilo
semelhante àquela que existe entre o romance e o conto. Não que
uma história de vida fique mais
interessante depois de um percurso de análise. Mas talvez o modo
de narrá-la se torne mais leve,
mais elegante. Já não há necessidade de tudo explicar, tudo controlar. O conto permite elipses,
suspensões na ordem narrativa,
espaços de silêncio.
Além disso, o conto, como diz o
romancista argentino Ricardo Piglia, conta sempre duas histórias:
uma explícita, destinada a conduzir o interesse do leitor, e outra
oculta, embutida na primeira, cujo sentido só se revela no final. Como se o conto, melhor do que o
romance (e aproximado à poesia), não temesse o inconsciente,
lidando com elementos de incerteza por onde ele (o inconsciente
do leitor? Do autor? Do próprio
texto?) pudesse se manifestar.
Essas considerações me ocorreram ao ler o segundo livro de contos do psicanalista Sérgio Telles,
"Peixe de Bicicleta", que assim como o primeiro, "O Mergulhador
de Acapulco", remete o leitor ao
"tempo da delicadeza" da canção
de Chico Buarque.
Telles não é o único psicanalista
que escreve literatura. Hélio Pellegrino foi poeta, seu filho Pedro foi
poeta também e um escultor surpreendente. A psicanalista Samira
Chalub, de São Paulo, era uma
boa contista. A carioca Lívia García-Roza foi indicada para o Jabuti deste ano pelo seu quarto livro,
a excelente novela "Cine Odeon".
Como eles, e outros tantos, Telles escreve por necessidade. É
preciso fazer alguma outra coisa,
tecer outra costura com o rude
barbante de tantas vidas que nós,
psicanalistas, passamos o tempo a
desenrolar, para que não se embarace em nossas mãos. Para que
não nos embaracemos nele.
Com aguda sensibilidade para
os múltiplos sentidos que podem
ser extraídos dos detalhes mais
insignificantes de uma existência,
Telles nos oferece neste novo livro
20 textos curtos, de características
variadas.
Alguns são narrativas no sentido tradicional da palavra, ordenadas com começo, meio e fim, e
uma certa tensão dramática conduzindo a atenção do leitor. É o
caso de "Uma Coleção de Lápis",
que abre o livro, conto de estrutura clássica em que um fragmento
do tempo presente remete à rememoração de um incidente de
infância, um ato mesquinho do
qual o narrador se envergonha.
O tom levemente nostálgico que
abre o conto dá lugar a um desfecho anticlimático, "adulto": o destino do objeto que evocou as lembranças do passado é o saco de lixo. É o caso de "Um Jantar", em
que um encontro social é narrado
segundo as diferentes perspectivas dos participantes, revelando
os inevitáveis mal-entendidos e os
desencontros que pontuam nossa
relação com o outro.
Outros são pequenas crônicas,
fragmentos, flashes do tempo
perdido como o belo "Mesa" ou o
comovente "Um Bilhete de
Amor". São descrições com alto
poder de condensação, que não
precisam contar uma história para se justificar.
Telles não se preocupa com a
unidade no que se refere à voz que
conduz a narrativa. O "eu" narrador varia, arbitrariamente, de
uma história a outra, o que talvez
devesse ser evitado em um conjunto tão econômico de contos.
O que confere uma certa unidade ao conjunto não é a posição do
narrador, nem uma marca estilística forte, mas uma certa melancolia que perpassa todos os textos,
terminando com "Despedida",
curta descrição de uma vida em
estado terminal.
Há um aspecto, entretanto, em
que o psicanalista sobrepuja o escritor. São os casos em que Telles
não resiste à tentação de explicar
as motivações embutidas em seu
argumento. Passagens de psicanálise explícita às vezes poderiam
ser evitadas, para não impedir o
efeito enigmático do "conto (secreto) embutido dentro do conto", a que se refere Ricardo Piglia.
Contos como "Barriga Adentro",
"Retirada" e "Tique Nervoso" ficariam melhores sem os (sutis, é
verdade) esclarecimentos oferecidos ao leitor.
É que literatura e psicanálise,
nascidas da mesma perplexidade
diante do vasto enigma humano,
constroem a partir daí destinos
bem diferentes. A primeira dá voz
ao enigma, a segunda tenta decifrá-lo. A prática clínica diária gera
em nós, psicanalistas, o hábito da
explicação ainda que não para o
analisando, ao menos para nós
mesmos. É um hábito que a criação literária precisa desconstruir
para se realizar plenamente pois,
como lembra Godard em seu
"Elogio ao Amor": na arte, "toda
solução profana um problema".
Ao que outra personagem completa, mais adiante: ... "e todo problema profana um enigma".
Maria Rita Kehl é psicanalista, ensaísta
e autora de, entre outros, "Sobre Ética e
Psicanálise" (Companhia das Letras)
Peixe de Bicicleta
Autor: Sérgio Telles
Editora: EdUFSCar (Editora da
Universidade Federal de São Carlos)
Quanto: R$ 23,50 (158 págs.)
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