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LIVRO/LANÇAMENTO
"VEREDICTO EM CANUDOS"
Relato de Sándor Márai, embora bem-sucedido, necessita de fábula para sintetizar massacre
Húngaro reaclimata conflito brasileiro
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Esta novela do húngaro
Sándor Márai (1900-1989)
tem tudo para atrair o interesse
do leitor brasileiro. Passa-se num
lugar chamado Rancho do Vigário, onde estão aquarteladas as
forças do Exército brasileiro, no
dia 5 de outubro de 1897. É o momento em que o marechal Carlos
Machado Bittencourt comunica à
imprensa a vitória do governo sobre os rebelados de Canudos.
Sándor Márai nunca esteve no
Brasil e (como ele próprio relata
no posfácio de "Veredicto em Canudos") sofreu muito para ler "Os
Sertões", de Euclydes da Cunha,
na tradução inglesa. Sabendo-se
disso, fica um pouco difícil avaliar
com precisão a qualidade desta
novela. Nossa curiosidade diante
do livro de Márai corre o risco de
tornar-se extraliterária. Como é
que um húngaro, admirador não
muito entusiasta de Euclydes da
Cunha, dá conta de escrever sobre
o massacre de Canudos? A cada
página, esperamos um deslize
-explicações em demasia, inverosimilhanças, desajustes.
E nada disso acontece. O autor
não perde tempo com pormenores geográficos e contextualizações históricas. Tudo aquilo que é
necessário explicar ao leitor europeu vai sendo transmitido sem didatismo, sem obviedade. Também a tradução de Paulo Schiller
parece muito habilidosa, vence o
desafio de devolver para o português um universo de referências
que, originado do Brasil, passou
antes pelo inglês e pelo húngaro.
Esse processo de reaclimatação
é tão bem-sucedido, adquire tanta
transparência diante de nossos
olhos, que uma primeira reação
seria ler "Veredicto em Canudos"
como se tivesse sido escrito por
um autor brasileiro.
Nesse momento a experiência
de leitura se complica. Os detalhes
técnicos, os recursos de ambientação, tudo aquilo que possa haver de "realista" na narrativa, não
nos causam estranheza. Entretanto nenhum brasileiro teria escrito
"Veredicto em Canudos". Há algo
de distante, de desapaixonado, de
difuso, como se faltasse substância ao que está sendo contado. São
muito relevantes os temas que o
livro coloca em discussão, mas o
próprio autor parece desmotivado para levá-la até o fim.
Sándor Márai exilou-se da Hungria em 1948, fugindo da perseguição comunista. "Veredicto em
Canudos" foi escrito duas décadas depois, sob o impacto das revoltas estudantis de maio de 1968.
Poderíamos pensar que o massacre de Canudos foi um pretexto
para Márai tratar da repressão em
seu país. O governo brasileiro, imbuído dos ideais republicanos da
razão, do progresso e da democracia, mata milhares de inocentes, assim como em nome da liberdade, do socialismo e do proletariado cometeram-se atrocidades sem conta no Leste Europeu.
Mas a parábola seria excessivamente simplista, e o livro não se
alinha claramente a nenhum dos
lados em conflito. Boa parte de
"Veredicto em Canudos" é ocupada pelo diálogo entre o marechal Bittencourt e uma prisioneira de guerra. A misteriosa mulher,
uma das poucas sobreviventes do
morticínio, aderira ao messianismo de Antônio Conselheiro com
o mesmo espírito utópico, igualitário e romântico que mobilizava
os estudantes parisienses em 68.
O militar republicano não é, entretanto, um simples representante do poder, da repressão e do
pragmatismo político. A sobrevivente de Canudos diz que, no arraial do Conselheiro, "ninguém
tem medo da morte". O marechal
retruca: "Não, lá temiam a vida".
E pergunta se haveria em Canudos algo de superior ao mundo civilizado. "Ci-vi-li-za-do, sim...
não repudie a palavra. É possível
que também seja uma mentira...
Mas podemos viver nela."
Utopia com fanatismo ou civilização com injustiça? O dilema é
esboçado e reformulado em várias páginas do livro, que vai adotando uma estrutura bastante teatral de exposição.
Parece faltar a "Veredicto em
Canudos" uma fabulação que pudesse tornar menos abstrato o debate proposto. Raros são os trechos em que uma fala específica,
um episódio, uma surpresa assumem o poder de sintetizar esteticamente as idéias discutidas.
O acesso de ira de um major
diante da teimosia de seus prisioneiros; a minuciosa descrição de
um banho em plena seca nordestina; a aparição da cabeça de Antônio Conselheiro, como um troféu de guerra, entre litros e litros
de aguardente; a evocação da noite, do silêncio fatal no campo de
batalha são momentos em que
"Veredicto em Canudos" adquire
grande densidade estética.
De alguma forma, contudo, é
como se a dimensão dos eventos
narrados se esvaziasse por força
da imparcialidade do autor. Uma
frase da prisioneira, em seu diálogo com o marechal, resume bem o
espírito: "De Canudos não se pode... falar. Canudos só... acontece.
Como não se pode falar do amor.
Ou da religião. Existe ou não...
Mas, se falam, não é mais a mesma coisa... Só existe a realidade".
VEREDICTO EM CANUDOS - Autor:
Sándor Márai. Tradutor: Paulo Schiller.
Editora: Companhia das Letras. Quanto:
R$ 23 (160 págs.).
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