São Paulo, sábado, 04 de maio de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

"VEREDICTO EM CANUDOS"

Relato de Sándor Márai, embora bem-sucedido, necessita de fábula para sintetizar massacre

Húngaro reaclimata conflito brasileiro

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Esta novela do húngaro Sándor Márai (1900-1989) tem tudo para atrair o interesse do leitor brasileiro. Passa-se num lugar chamado Rancho do Vigário, onde estão aquarteladas as forças do Exército brasileiro, no dia 5 de outubro de 1897. É o momento em que o marechal Carlos Machado Bittencourt comunica à imprensa a vitória do governo sobre os rebelados de Canudos.
Sándor Márai nunca esteve no Brasil e (como ele próprio relata no posfácio de "Veredicto em Canudos") sofreu muito para ler "Os Sertões", de Euclydes da Cunha, na tradução inglesa. Sabendo-se disso, fica um pouco difícil avaliar com precisão a qualidade desta novela. Nossa curiosidade diante do livro de Márai corre o risco de tornar-se extraliterária. Como é que um húngaro, admirador não muito entusiasta de Euclydes da Cunha, dá conta de escrever sobre o massacre de Canudos? A cada página, esperamos um deslize -explicações em demasia, inverosimilhanças, desajustes.
E nada disso acontece. O autor não perde tempo com pormenores geográficos e contextualizações históricas. Tudo aquilo que é necessário explicar ao leitor europeu vai sendo transmitido sem didatismo, sem obviedade. Também a tradução de Paulo Schiller parece muito habilidosa, vence o desafio de devolver para o português um universo de referências que, originado do Brasil, passou antes pelo inglês e pelo húngaro.
Esse processo de reaclimatação é tão bem-sucedido, adquire tanta transparência diante de nossos olhos, que uma primeira reação seria ler "Veredicto em Canudos" como se tivesse sido escrito por um autor brasileiro.
Nesse momento a experiência de leitura se complica. Os detalhes técnicos, os recursos de ambientação, tudo aquilo que possa haver de "realista" na narrativa, não nos causam estranheza. Entretanto nenhum brasileiro teria escrito "Veredicto em Canudos". Há algo de distante, de desapaixonado, de difuso, como se faltasse substância ao que está sendo contado. São muito relevantes os temas que o livro coloca em discussão, mas o próprio autor parece desmotivado para levá-la até o fim.
Sándor Márai exilou-se da Hungria em 1948, fugindo da perseguição comunista. "Veredicto em Canudos" foi escrito duas décadas depois, sob o impacto das revoltas estudantis de maio de 1968. Poderíamos pensar que o massacre de Canudos foi um pretexto para Márai tratar da repressão em seu país. O governo brasileiro, imbuído dos ideais republicanos da razão, do progresso e da democracia, mata milhares de inocentes, assim como em nome da liberdade, do socialismo e do proletariado cometeram-se atrocidades sem conta no Leste Europeu.
Mas a parábola seria excessivamente simplista, e o livro não se alinha claramente a nenhum dos lados em conflito. Boa parte de "Veredicto em Canudos" é ocupada pelo diálogo entre o marechal Bittencourt e uma prisioneira de guerra. A misteriosa mulher, uma das poucas sobreviventes do morticínio, aderira ao messianismo de Antônio Conselheiro com o mesmo espírito utópico, igualitário e romântico que mobilizava os estudantes parisienses em 68.
O militar republicano não é, entretanto, um simples representante do poder, da repressão e do pragmatismo político. A sobrevivente de Canudos diz que, no arraial do Conselheiro, "ninguém tem medo da morte". O marechal retruca: "Não, lá temiam a vida". E pergunta se haveria em Canudos algo de superior ao mundo civilizado. "Ci-vi-li-za-do, sim... não repudie a palavra. É possível que também seja uma mentira... Mas podemos viver nela."
Utopia com fanatismo ou civilização com injustiça? O dilema é esboçado e reformulado em várias páginas do livro, que vai adotando uma estrutura bastante teatral de exposição.
Parece faltar a "Veredicto em Canudos" uma fabulação que pudesse tornar menos abstrato o debate proposto. Raros são os trechos em que uma fala específica, um episódio, uma surpresa assumem o poder de sintetizar esteticamente as idéias discutidas.
O acesso de ira de um major diante da teimosia de seus prisioneiros; a minuciosa descrição de um banho em plena seca nordestina; a aparição da cabeça de Antônio Conselheiro, como um troféu de guerra, entre litros e litros de aguardente; a evocação da noite, do silêncio fatal no campo de batalha são momentos em que "Veredicto em Canudos" adquire grande densidade estética.
De alguma forma, contudo, é como se a dimensão dos eventos narrados se esvaziasse por força da imparcialidade do autor. Uma frase da prisioneira, em seu diálogo com o marechal, resume bem o espírito: "De Canudos não se pode... falar. Canudos só... acontece. Como não se pode falar do amor. Ou da religião. Existe ou não... Mas, se falam, não é mais a mesma coisa... Só existe a realidade".


VEREDICTO EM CANUDOS - Autor: Sándor Márai. Tradutor: Paulo Schiller. Editora: Companhia das Letras. Quanto: R$ 23 (160 págs.).



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