São Paulo, sábado, 04 de maio de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

"A IGNORÂNCIA"

Livro revê o mito da busca pela terra natal através da história de um casal de exilados tchecos

Milan Kundera desfaz a ilusão da aventura do grande retorno

RINALDO GAMA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Era inevitável. Cedo ou tarde, Milan Kundera, nascido em Brno, na atual República Tcheca, em 1929, e cidadão francês desde 1981, iria enfrentar literariamente um dos grandes males do século 20: o exílio.
Radicado na França a partir de 1975, Kundera esperou que se passassem 11 anos da Revolução de Veludo (89) para publicar seu ajuste de contas com o desterro.
A "Canção do Exílio", ou melhor, "A Odisséia" de Milan Kundera é o romance "A Ignorância" (2000), lançado primeiramente na Espanha. Enquanto "A Insustentável Leveza do Ser", que consagrou Kundera internacionalmente, começa com uma reflexão sobre o "eterno retorno" nietzscheano, "A Ignorância", que chega agora às livrarias brasileiras, apresenta uma idéia cruel: para o desterrado, não existe a "grande volta". O exílio é uma doença sem cura, que quase nunca ela bane o indivíduo apenas da terra. Pode fazer isso em relação a todas as dimensões que importam na vida.
A tese está embutida no próprio título do romance, que o autor explica a partir da análise da palavra nostalgia: "Em grego, retorno se diz "nóstos", "Álgos" significa sofrimento. A nostalgia é portanto o sofrimento causado pelo desejo irrealizado de retornar". "Em espanhol ", prossegue Kundera, ""añorar" (ter nostalgia) vem do catalão "enyorar", derivado da palavra latina "ignorare" (ignorar)".
Nostalgia, contaminada pela ignorância, é o sentimento que designa a dupla de protagonistas do romance, Irena e Josef. Ambos deixaram a Tchecoslováquia no final dos anos 60 e durante duas décadas não puseram os pés em sua terra natal: ela exilou-se em Paris; ele, em Copenhague. Muito antes da partida, o casal havia tido uma aproximação fugaz, que o noivado de Irena impediu de levar à frente. Após a derrota do comunismo em seu país, os dois se reencontram no aeroporto da capital francesa, rumo à República Tcheca. Existirá o "grande regresso"? É possível retomar a vida interrompida?
As recorrentes citações à "Odisséia", de Homero, não surgem, portanto, ao acaso. "Ulisses, o maior aventureiro de todos os tempos, é também o maior nostálgico", escreve Milan Kundera. "Entre a "dolce vita" no estrangeiro e o retorno arriscado para casa, ele escolheu o retorno. Ao infinito (pois a aventura pretende ser infinita), preferiu o finito (pois o retorno é a reconciliação com a finitude da vida)." Em certa passagem, Josef duvida que Ulisses tenha sido feliz com sua escolha. Há felicidade no que pode acabar? E, se a marcha inexorável da vida aponta para o fim, a condição de existir terá sentido?
Nem Josef nem Irena realizam-se com o regresso porque ele explicita-lhes ainda sua irreversível condição de estrangeiro. Na França, ninguém aceita que a exilada não tenha desejado correr para Praga no dia seguinte à revolução; em seu país, suas amigas não a reconhecem mais como tcheca. Josef não fica à vontade na terra natal. Mal vê a hora de retornar para a Dinamarca.
Sem a profusão de reflexões metalinguísticas que levam, muitas vezes, seu autor a ser classificado de "escritor para escritores e críticos", "A Ignorância" pode conter momentos autobiográficos de uma fracassada experiência de retorno. Mais do que isso, no entanto, para seu autor o romance terá funcionado como uma forma de conhecimento dela mesma -a ignorância. Antes de tudo, é preciso preparar-se para conhecer a natureza da dor.


Rinaldo Gama é mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP, editor-executivo dos "Cadernos de Literatura Brasileira", do Instituto Moreira Salles, e autor de "O Guardador de Signos: Caeiro em Pessoa" (Perspectiva/ IMS, 1995)



A Ignorância    
Autor: Milan Kundera
Tradutor: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 24 (160 págs.)




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