São Paulo, sexta-feira, 04 de junho de 2004

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Brasileiros se desdobram em "Tirésia"

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Com o sobrenome Choveaux herdado do pai francês, Clara desembarcou em Paris em 2000.
Ela tinha no bolso apenas as economias da mesada. Mas logo encontrou trabalho como garçonete no badalado restaurante Favela Chic e descolou um "bico" de figurante no segundo longa-metragem de um cineasta francês.
O filme era "O Pornógrafo" (2001), e o diretor, Bertrand Bonello, 35. "Esse encontro mudou minha vida", diz Clara, que se tornou protagonista do terceiro filme de Bonello, "Tirésia". O título disputou a Palma de Ouro em Cannes em 2003 (vencida por "Elefante", de Gus van Sant) e estréia hoje no Brasil, com a atriz num papel cheio de exigências.
O resumo da história: Tirésia é um transexual brasileiro que se vê seqüestrado por um cliente, quando o acompanha até sua casa. Privado das doses diárias de hormônio que garantem suas formas femininas, Tirésia vai retomando progressivamente os traços da masculinidade.
Para que a transformação mulher/homem fosse crível, Bonello escalou um ator para viver a segunda metade da saga de Tirésia: o também brasileiro Tiago Teles.
Assim como no caso de Clara, o diretor diz que o acerto da escolha de Teles para o papel não se evidenciou nos primeiros testes. "O resultado do primeiro teste de Clara não foi lá muito bom. Mas fizemos um segundo e um terceiro, quando entendi que seria preciso trabalhar muito, mas que ela tinha o principal para o papel."
A atriz afirma que o teste foi "verdadeiramente terrível", sobretudo por sua inexperiência. "Não sou profissional. Não estava acostumada a fazer testes. Bertrand estava muito calmo e tentou me ajudar, mas percebi que precisaria de tempo para lidar com aquilo, para digerir aos poucos."
No caso de Teles as dificuldades foram ainda maiores. "Encontrá-lo foi mais difícil, porque já tínhamos o modelo feminino. Isso nos obrigava a uma escolha muito mais precisa", diz Bonello.
Na busca pelo ator, o diretor e a responsável pela escalação de elenco do filme passaram a freqüentar, com uma câmera na mão, locais típicos de brasileiros.
"Um dia, fomos a uma festa de brasileiros, e ela [a diretora de casting] me chamou a atenção para Tiago", conta Bonello. Ele diz ter visto "no rosto de Tiago algo que era ao mesmo tempo muito forte e muito frágil".
Essa dubiedade serve bem à segunda fase da história de Tirésia, quando a personagem tem "a força e a humildade do oráculo". Mas havia um porém. Ou vários. "Tiago usava uma espécie de franja loura, estava sem barba, completamente bêbado e não falava uma palavra de francês."
O ator ri da descrição e diz que não se lembra de estar "tão bêbado assim", mas afirma que a proposta de trabalhar num filme lhe pareceu "um conto de fadas".
Estudante de filosofia no Brasil, Teles estava em Paris "para aprender francês, principalmente, mas também porque queria viajar, descobrir algumas coisas, deixar outras para trás".
Quando Bonello o convidou para trabalhar em seu filme, Teles achou que se tratava de figuração. O diretor respondeu que não, mas não deixou claro que era o papel do protagonista o que propunha.
Ainda assim, Teles ficou exultante. "Nunca tinha pensado em trabalhar no cinema. Eu estava em Paris, com minha mochila nas costas, fui a uma festa e alguém me propôs fazer um filme. É ou não é um conto de fadas?"
Para corrigir a deficiência do ator no idioma francês, dois professores se revezaram num curso superintensivo. Já a insegurança de Clara desapareceu assim: "Quando disse que ela era a escolhida, Clara progrediu muito rápido, porque um clima de confiança se instalou. Vi que ela precisa se sentir segura para atuar bem".


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