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CRÍTICA
Erudição desce ao submundo do mercado do sexo
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
Em "O Pornógrafo" (2001), a
proposição de que partia Bertrand Bonello servia de antídoto
para o veneno de "A Professora
de Piano", do austríaco Michael
Haneke, lançado no mesmo ano.
Enquanto Haneke, em sua sintomatologia, procurava demonstrar que nem mesmo os ditos espíritos eruditos estão hoje a salvo
da proliferação dos clichês (no caso, os da pornografia), Bonello
nos contava a história de um veterano diretor de filmes pornôs que,
apesar de tudo, conseguia preservar o refinamento de seu espírito.
Em "Tirésia", o cineasta franco-canadense leva sua erudição ao
submundo do mercado do sexo.
Terranova, o protagonista, é um
ser estético -intelectual perturbado de linhagem dostoievskiana- que empreende uma longa
jornada noite adentro para estudar, no Bois de Boulogne, a antropologia da face gloriosa dos travestis brasileiros. Estamos na melhor passagem, em que Terranova
encontra sua presa, Tirésia, transexual frágil interpretado por Clara Choveaux e Tiago Teles.
Atraído por seu mistério, mas
incapaz de tocá-la, Terranova faz
de Tirésia sua prisioneira. Aos
poucos, sem poder repor seus
hormônios, esta perde os contornos femininos. Bonello começa a
se deixar enredar aí pela sua própria premissa: a de reencenar o
mito de Tiresias, o herói tebano
que, tendo surpreendido duas
serpentes em ato de amor (aqui,
uma ilustração no quarto de Terranova), foi transformado em
mulher e depois em homem antes
de ser cegado pela deusa Atenas e
adquirir o dom da vidência.
Bonello busca, para a sua direção, um tom seco e álgido de clara
inspiração bressoniana. De Robert Bresson também vêm esses
personagens que não são propriamente tipos psicológicos, mas "tipos de escolha" -tal como os
dois encarnados por Laurent Lucas: Terranova, da incerteza moral, e padre François, da crença-,
e esse trajeto, de estranhos atalhos, entre o mal e a graça.
O problema é que sua história
só se sustenta por elementos que
lhe são extrínsecos. Seu eruditismo acaba caindo no vazio. Seu filme-para-entendidos se debate e
se esgota em sua premissa: antes o
cineasta tivesse deixado um pouco de lado o trágico destino do
mítico Tiresias para se deter melhor nessa estranha e desesperada
forma de erotismo que os brasileiros costumam expressar lá fora.
Tirésia
Tiresia
Direção: Bertrand Bonello
Produção: França/Canadá, 2003
Com: Laurent Lucas, Clara Choveaux
Quando: a partir de hoje no HSBC Belas
Artes
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