São Paulo, sexta-feira, 04 de junho de 2004

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CRÍTICA

Erudição desce ao submundo do mercado do sexo

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Em "O Pornógrafo" (2001), a proposição de que partia Bertrand Bonello servia de antídoto para o veneno de "A Professora de Piano", do austríaco Michael Haneke, lançado no mesmo ano.
Enquanto Haneke, em sua sintomatologia, procurava demonstrar que nem mesmo os ditos espíritos eruditos estão hoje a salvo da proliferação dos clichês (no caso, os da pornografia), Bonello nos contava a história de um veterano diretor de filmes pornôs que, apesar de tudo, conseguia preservar o refinamento de seu espírito.
Em "Tirésia", o cineasta franco-canadense leva sua erudição ao submundo do mercado do sexo. Terranova, o protagonista, é um ser estético -intelectual perturbado de linhagem dostoievskiana- que empreende uma longa jornada noite adentro para estudar, no Bois de Boulogne, a antropologia da face gloriosa dos travestis brasileiros. Estamos na melhor passagem, em que Terranova encontra sua presa, Tirésia, transexual frágil interpretado por Clara Choveaux e Tiago Teles.
Atraído por seu mistério, mas incapaz de tocá-la, Terranova faz de Tirésia sua prisioneira. Aos poucos, sem poder repor seus hormônios, esta perde os contornos femininos. Bonello começa a se deixar enredar aí pela sua própria premissa: a de reencenar o mito de Tiresias, o herói tebano que, tendo surpreendido duas serpentes em ato de amor (aqui, uma ilustração no quarto de Terranova), foi transformado em mulher e depois em homem antes de ser cegado pela deusa Atenas e adquirir o dom da vidência.
Bonello busca, para a sua direção, um tom seco e álgido de clara inspiração bressoniana. De Robert Bresson também vêm esses personagens que não são propriamente tipos psicológicos, mas "tipos de escolha" -tal como os dois encarnados por Laurent Lucas: Terranova, da incerteza moral, e padre François, da crença-, e esse trajeto, de estranhos atalhos, entre o mal e a graça.
O problema é que sua história só se sustenta por elementos que lhe são extrínsecos. Seu eruditismo acaba caindo no vazio. Seu filme-para-entendidos se debate e se esgota em sua premissa: antes o cineasta tivesse deixado um pouco de lado o trágico destino do mítico Tiresias para se deter melhor nessa estranha e desesperada forma de erotismo que os brasileiros costumam expressar lá fora.


Tirésia
Tiresia
  
Direção: Bertrand Bonello
Produção: França/Canadá, 2003
Com: Laurent Lucas, Clara Choveaux
Quando: a partir de hoje no HSBC Belas Artes



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