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LITERATURA
Em novo livro, escritor norte-americano, que vem ao país em julho, renega tradição de obras de ciúme e desconfiança
Em "Noite", Auster tece anti-"Dom Casmurro"
RAFAEL CARIELLO
DE NOVA YORK
Há uma boa metáfora para a literatura num dos filmes de Paul
Auster: uma pedra mágica, em "O
Mistério de Lulu", dá aos que estão à sua volta a sensação de que
tudo é mais real. "Penso nela como a cola que segura o mundo
junto. Que impede os copos de
saírem voando das mesas, e também como aquilo que conecta as
pessoas umas às outras", ele diz.
É dessa última conexão que trata seu livro mais recente, "Noite
do Oráculo", segundo ele uma
simples "história de amor" entre
um escritor, Sidney Orr, e sua
mulher, Grace.
Contra toda a tradição de livros
sobre o ciúme e a desconfiança,
Auster -um dos principais romancistas americanos, que vem
ao Brasil no mês que vem como
convidado da Festa Literária Internacional de Parati- realizou
uma espécie de anti-"Dom Casmurro" (de Machado de Assis, ele
diz, leu "aquele livro sobre o cachorro", o "Quincas Borba").
A seguir, trechos da entrevista,
realizada na casa do escritor, no
bairro do Brooklyn, em Nova
York.
Folha - O sr. cita Fernando Pessoa
em seu novo livro. É uma leitura recente?
Paul Auster - Não. Comecei a ler
Pessoa no fim dos anos 60, ainda
era bastante novo. Sempre gostei
de sua obra. É um dos grandes escritores do século 20.
Folha - Como o sr., Pessoa também trata da questão da identidade, ao assumir diferentes heterônimos. O sr. vê alguma relação com
os seus livros?
Auster - A cada romance que escrevi, era como se tivesse uma
máscara no meu rosto. É por isso
que, a cada livro, a linguagem muda, porque reflete o personagem
-mesmo se escrito em terceira
pessoa. Só escrevo como eu mesmo nas obras de não-ficção. Este é
o fascínio dos romances: você vira
um ser imaginário.
Folha - E isso acontece com seus
personagens também? A escrita
-eles são muitas vezes autores-
é uma maneira de se tornarem outras pessoas?
Auster - Possivelmente. Sempre
fui fascinado com a idéia do romance como um objeto. Quando
lia uma obra normal, em terceira
pessoa, sempre tinha esse sentimento: "Quem fala? Quem me
conta isso? Onde ocorre?".
Gosto de livros em que alguém
diz: "Achei esse manuscrito num
baú". Aí, o livro se torna um livro
de fato. Ele não finge ser o mundo.
Eu gosto de mostrar os andaimes
que existem por trás da história. E
acho que é por causa disso que
muitos personagens de meus livros escrevem.
Folha - É um livro, mas pode ser
uma maneira de se aproximar da
realidade? Como se, contando histórias, pudéssemos fazê-la um
pouco mais real?
Auster - Traduzi um escritor
francês desconhecido, anos atrás,
que dizia: "Há pessoas para as
quais o mundo não é suficiente:
poetas, filósofos e os leitores de
todos os livros".
E há essa frase bonita, do cineasta russo [Andrei] Tarkovsky, que
ouvi: "A arte existe porque a vida
não é perfeita, se fosse, não precisaríamos dela". É verdade. Se a vida fosse perfeita, teríamos tal prazer em cada coisa que fazemos,
que não precisaríamos de mundos imaginários.
Folha - Parece aquela pedra do
seu filme "O Mistério de Lulu", que
torna tudo mais real.
Auster - Sim. Penso nela como a
cola que segura o mundo junto.
Que impede os copos de saírem
voando das mesas, e também como aquilo que conecta as pessoas
umas às outras.
Folha - Em "A Noite do Oráculo",
o sr. repete muitas das situações
que acontecem em seus outros livros, mas me parece que ele é bastante diferente, porque no fim Sidney Orr escolhe sua mulher, Grace,
em detrimento dos seus escritos.
Auster - Sim. É uma história de
amor. É sobre o relacionamento
deles. Mas se parece um pouco
com o fim da "Trilogia", em que o
personagem rasga as páginas de
um caderno.
Mas são situações diferentes.
Tudo que Sidney escreve no final
sobre Grace é pura especulação.
Podemos saber que ela teve um
caso com o amigo de Sidney em
Portugal. Fica claro porque o filho
de Trause [o amigo] diz para Grace que ela foi uma espécie de madrasta dele. Tudo depois disso
não pode ser checado. É uma história que ele criou. A pior possível. Mas ele o faz para dizer a si
mesmo: ainda que seja isso o que
aconteceu, não importa. Desde
que ela queira ficar ao meu lado,
não me importo.
Folha - Há muitos livros sobre as
razões para não confiar numa mulher. Boa parte da literatura dos últimos dois séculos é sobre a desconfiança e o ciúme. Mas é interessante que o seu livro...
Auster - É o oposto. Sim.
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