São Paulo, sexta-feira, 04 de junho de 2004

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LITERATURA

Em novo livro, escritor norte-americano, que vem ao país em julho, renega tradição de obras de ciúme e desconfiança

Em "Noite", Auster tece anti-"Dom Casmurro"

RAFAEL CARIELLO
DE NOVA YORK

Há uma boa metáfora para a literatura num dos filmes de Paul Auster: uma pedra mágica, em "O Mistério de Lulu", dá aos que estão à sua volta a sensação de que tudo é mais real. "Penso nela como a cola que segura o mundo junto. Que impede os copos de saírem voando das mesas, e também como aquilo que conecta as pessoas umas às outras", ele diz.
É dessa última conexão que trata seu livro mais recente, "Noite do Oráculo", segundo ele uma simples "história de amor" entre um escritor, Sidney Orr, e sua mulher, Grace.
Contra toda a tradição de livros sobre o ciúme e a desconfiança, Auster -um dos principais romancistas americanos, que vem ao Brasil no mês que vem como convidado da Festa Literária Internacional de Parati- realizou uma espécie de anti-"Dom Casmurro" (de Machado de Assis, ele diz, leu "aquele livro sobre o cachorro", o "Quincas Borba").
A seguir, trechos da entrevista, realizada na casa do escritor, no bairro do Brooklyn, em Nova York.
 

Folha - O sr. cita Fernando Pessoa em seu novo livro. É uma leitura recente?
Paul Auster -
Não. Comecei a ler Pessoa no fim dos anos 60, ainda era bastante novo. Sempre gostei de sua obra. É um dos grandes escritores do século 20.

Folha - Como o sr., Pessoa também trata da questão da identidade, ao assumir diferentes heterônimos. O sr. vê alguma relação com os seus livros?
Auster -
A cada romance que escrevi, era como se tivesse uma máscara no meu rosto. É por isso que, a cada livro, a linguagem muda, porque reflete o personagem -mesmo se escrito em terceira pessoa. Só escrevo como eu mesmo nas obras de não-ficção. Este é o fascínio dos romances: você vira um ser imaginário.

Folha - E isso acontece com seus personagens também? A escrita -eles são muitas vezes autores- é uma maneira de se tornarem outras pessoas?
Auster -
Possivelmente. Sempre fui fascinado com a idéia do romance como um objeto. Quando lia uma obra normal, em terceira pessoa, sempre tinha esse sentimento: "Quem fala? Quem me conta isso? Onde ocorre?".
Gosto de livros em que alguém diz: "Achei esse manuscrito num baú". Aí, o livro se torna um livro de fato. Ele não finge ser o mundo. Eu gosto de mostrar os andaimes que existem por trás da história. E acho que é por causa disso que muitos personagens de meus livros escrevem.

Folha - É um livro, mas pode ser uma maneira de se aproximar da realidade? Como se, contando histórias, pudéssemos fazê-la um pouco mais real?
Auster -
Traduzi um escritor francês desconhecido, anos atrás, que dizia: "Há pessoas para as quais o mundo não é suficiente: poetas, filósofos e os leitores de todos os livros".
E há essa frase bonita, do cineasta russo [Andrei] Tarkovsky, que ouvi: "A arte existe porque a vida não é perfeita, se fosse, não precisaríamos dela". É verdade. Se a vida fosse perfeita, teríamos tal prazer em cada coisa que fazemos, que não precisaríamos de mundos imaginários.

Folha - Parece aquela pedra do seu filme "O Mistério de Lulu", que torna tudo mais real.
Auster -
Sim. Penso nela como a cola que segura o mundo junto. Que impede os copos de saírem voando das mesas, e também como aquilo que conecta as pessoas umas às outras.

Folha - Em "A Noite do Oráculo", o sr. repete muitas das situações que acontecem em seus outros livros, mas me parece que ele é bastante diferente, porque no fim Sidney Orr escolhe sua mulher, Grace, em detrimento dos seus escritos.
Auster -
Sim. É uma história de amor. É sobre o relacionamento deles. Mas se parece um pouco com o fim da "Trilogia", em que o personagem rasga as páginas de um caderno.
Mas são situações diferentes. Tudo que Sidney escreve no final sobre Grace é pura especulação. Podemos saber que ela teve um caso com o amigo de Sidney em Portugal. Fica claro porque o filho de Trause [o amigo] diz para Grace que ela foi uma espécie de madrasta dele. Tudo depois disso não pode ser checado. É uma história que ele criou. A pior possível. Mas ele o faz para dizer a si mesmo: ainda que seja isso o que aconteceu, não importa. Desde que ela queira ficar ao meu lado, não me importo.

Folha - Há muitos livros sobre as razões para não confiar numa mulher. Boa parte da literatura dos últimos dois séculos é sobre a desconfiança e o ciúme. Mas é interessante que o seu livro...
Auster -
É o oposto. Sim.


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