São Paulo, sábado, 4 de julho de 1998

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Jogo do tempo em tempo de guerra

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Queria escrever sobre diálogos -não o político e partidário-, mas o anterior, essencial, o diálogo como gênero literário e busca da verdade. Ou comentar a tristeza simples, quase irrisória de "A Trégua", de Primo Levi-Francesco Rossi considerado melodramático pelos excessos da música de fundo.
Está na fila o livro de ensaios literários de Leo Schlafman, "A Verdade e a Mentira" (Civilização Brasileira), que não conseguiu chegar às páginas de resenhas literárias. Caso da reedição do romance de Esdras do Nascimento "Convite ao Desespero" (Multimais Editorial), que, 30 anos depois, já não é só ficção, mas reportagem. Há tempos penso em tratar do "lied", expressão máxima da arte intimista, aquela que nos faz artistas, combinação de voz e instrumento, música e poesia.
Meu lado partisan indigna-se contra a abusiva presença de enormes anúncios nas primeiras páginas dos grandes jornais (só nesta semana foram três!), impondo-se pelos cifrões naquela que é a mais nobre de todas, destinada a espelhar fielmente o acontecido. Por outro lado, o ostensivo silêncio dos telejornais noturnos sobre a decisão judicial que suspendeu a telejogatina diurna escancara uma triste verdade que não pode passar em brancas nuvens: as emissoras de televisão comerciais não são veículos jornalísticos, e os seus noticiosos, meros pretextos para o gozo das prerrogativas e privilégios constitucionais.
Impõe-se o futebol, não adianta resistir. O transcendental mingua diante do colossal embate Brasil x Dinamarca. Mesmo nesta ilustríssima Ilustrada. Só que escrevo na quinta-feira, o jogo é sexta e você, leitor, está folheando esta folha no sábado.
Jornal, "journal", "giornale", a profissão está entranhada com a noção de tempo, continuação, periodicidade (daí o "periodismo" em espanhol). O jornalista pode tudo ou quase tudo. Só não pode driblar essa dimensão inexorável que dá nome a tantos veículos: "Time", "Temps", "Tiempo", "Zeit".
Há um sentido vital no jornalismo: apesar do "deadline", a linha da morte, prazo fatal, estamos vivos no dia seguinte, dispostos a recomeçar tudo novamente, do princípio ao fim. Para os comuns mortais, o calendário funciona como advertência para algo que se esgota. Para o jornalista, relógio é desafio: fazer o melhor antes que o ponteiro diga que o dia acabou, já é ontem.
Pela praxe jornalística brasileira, admite-se que o jornalista escreva "hoje" na matéria da véspera, quando o certo seria dizer "amanhã". A imprensa diária americana, tão zelosa na preservação da verdade, evita o truque atualizador, prefere indicar na abertura da matéria a data em que está sendo escrita (herança dos velhos despachos telegráficos). Dessa forma, hoje é hoje mesmo, mesmo que o leitor já esteja em outro dia.
O problema de nosso jornalismo é que essa pequena licença temporal desandou: atualmente, grande parte das edições do fim-de-semana e da segunda-feira são escritas na quinta ou sexta-feira e já se escreve "hoje" com dois ou até três dias de antecedência. Isso é "foul" (falta).
O anglicismo remete à terminologia inglesa do "football association", que tornava qualquer moleque de pelada de rua dos anos 30, 40 e 50 mais letrado no idioma de Marlowe do que muito torcedor de hoje com canudo debaixo do braço. Beque ("back", é o zagueiro), "corner", escanteio, "êndice" (de "hands", mão na bola, jogada hoje consagrada por nossos irmãos portenhos), "golquipe" ("goal-keeper", goleiro), "centerfór" ("center-forward", centroavante), "centerálfe" ("center-half", meia, meio-de-campo).
Restou o inexorável placar (de "placard", aviso, cartaz), último baluarte anglo-saxão do mais globalizado dos esportes. Nele inscreve-se a sentença de vida ou de morte, triunfo ou derrocada. Placar é taxativo. Nele importa e ele comporta apenas o número de gols ("goal", meta, finalidade, objetivo).
O futebol vem sendo assumido como metáfora da guerra, ou a guerra por outros meios. As cores nacionais, hinos, bandeiras e a exigência de naturalidade ou naturalização do jogador no país que representa, faz do esporte-rei a dramatização de uma batalha final.
Mas o técnico, general estrategista, pode ser estrangeiro, caso do sueco Bô Johanson, que comanda a seleção dinamarquesa, dos brasileiros Parreira, Carpegiani e do sérvio Bora Milutinovic, que organizou a fúria nigeriana.
Fazem lembrar os generais franceses a serviço de quem combatia o império britânico ou russo e os ingleses engajados na emancipação latino-americana. Lembram também os corsários a serviço de qualquer bandeira (bem diferentes dos bucaneiros), intrépidos e às vezes galantes guerreiros. Um grupo de corsários, originários da Normandia, tomou posse daquelas perdidas ilhas no Atlântico Sul às quais deram o nome de "malouinnes" ou maloínas (em homenagem a St. Malô, porto de origem). O que torna irrelevante a disputa bélico-futebolística entre argentinos e britânicos em torno do nome Falkland ou Malvinas. É francês.
Empreguei a metáfora da guerra na Copa de 82, mas como era na Espanha, também a vi assemelhada a uma tourada -morre o touro ou o toureiro. Não há meio termo, na arena ou no gramado. A "morte súbita", adotada agora nas prorrogações da Copa, faz do primeiro gol, a estocada final. Inapelável.
Mas as guerras, mesmo com rendições incondicionais, jamais são conclusivas. Veja o caso da Primeira Guerra Mundial. Alemanha, Japão e Itália, o nefando Eixo dos anos 40, são líderes na comunidade das nações. O fulminante triunfo na Guerra dos Seis Dias não impediu que em Israel, hoje, germinasse um impasse com o amargo sabor de derrota.
Os jogadores ingleses, batidos pelos argentinos e pelo juiz, foram recebidos como heróis, assim também os paraguaios. Significa que o placar, inabalável, começa a se relativizar.
A personagem "Radical Chic", do cartunista carioca Miguel Paiva, paramentada de soldado, dizia em "O Globo" que "se todas as guerras fossem decididas nos pênaltis, morreria muito menos gente".
Vinte e quatro horas antes do resultado do jogo de amanhã (ontem para você), não consigo enxergar os dinamarqueses como inimigos. O goleiro chama-se Schmeichel, que em alemão significa lisonja, mas em sentido figurado é sorriso.
Não pode ser malvisto ou malquisto o mais alegre povo da Europa, cujo herói nacional é Hans Christian Andersen, que, há 200 anos, povoa a imaginação das crianças com histórias maravilhosas. Na Dinamarca, segundo Shakespeare, havia algo de podre, mas mantém-se o castelo de Helsingor (ou Elsinore), onde vagava o príncipe Hamlet, dilacerado pelas dúvidas e pela fúria de vingança.
Dinamarqueses andam de bicicleta ou a pé (os sapatos Ecco são os melhores do mundo). Adoram doces e pastelaria, por isso cultivam a música brasileira com um tanto afinco e prazer (Egberto Gismonti pode atestá-lo).
Vamos ganhar? Perdemos? Interrogação agora, exclamação depois. Estou no meio, reticências. O jogo do tempo cura grande parte das mágoas, inclusive nos jogos de guerra. Amanhã (ontem) já é hoje para todos.
Errata
Consegui cometer dois deslizes no primeiro parágrafo do último texto (27/6/98), quando disse que a Gália "est omnia divisa". O certo é "omnis divisa" (singular). Também errei ao dizer que o jogo seria em St. Denis; foi em Parc des Prince. O escritor e filólogo Deonísio da Silva apitou a primeira infração, mestre Juca Kfouri, a outra.



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